terça-feira, 5 de novembro de 2013

Um príncipe na Mooca - 2ª parte



Noto que o Waldemar se esforça pra se fazer acreditar, eu acho que ele não mente, gosta de falar comigo, (nossas secções são bem próximas) e sempre conversamos sobre vários assuntos.
Mas, uma pequena e maldosa suspeita alimenta minha eterna curiosidade: ele chega a esse emprego, respondendo a um anúncio ou alguém sugeriu ao sr. Henry?  Não fico sabendo, pois ele procura desconversar quando indagado. Não me incomodo e nem me interessa, se  ele é escolhido, dentre vários candidatos, é porque é um bom gravador.
Porem, a coincidência de ele ser negro, também, não haveria um “dedo” do sr. Henry na opção? Mas, ele, o Waldemar, pessoa de fino trato, não se daria a estas intimidades sexuais, não pode ser, essa desconfiança minha é pura imaginação.

Uma tarde, durante  nossos  afazeres, o Waldemar me convida pra tomar um café no bar próximo. Temos essa liberdade, por sermos do setor artístico (sic) da empresa. No bar, pergunta se eu já tinha experimentado lasanha. Respondi que já tinha ouvido falar, mas ainda não havia saboreado. (só alguns anos depois do termino da guerra é que começaram a se popularizar as  delícias italianas). “Ah, neste caso, convido vc pra uma lasanha no “Gato que ri”, do largo do Arouche. Vc aceita, não é?”
“Sim”, respondi.
“Hoje é sexta-feira, vamos amanhã, sábado,  jantar”
“Nada me impede de aceitar seu convite, Waldemar, só se for almoço, minha noiva, a Myrtes me espera, a noitnha, sou noivo, vc sabe”
“Muito bem, Modesto, então vamos almoçar, sabe onde é, no largo do Arouche”

Algo perturba minhas “pequenas células cinzentas”, como diria Herculet Poirot, de Ágata Crhistie. Conheço a fama do “Gato que ri”, almoçando com um negro (não me move nenhum preconceito, fica bem claro, naquela época, porém, as coisas não eram assim, tão liberais como hoje).
Guloso como poucos, chego lá as 13 horas, conforme o combinado.  Essa é a primeira lasanha que como.  E gosto. Durante o almoço conta-me mais detalhes sobre seus parentes, sua falecida mãe, que era muito querida pela vizinhança da Mooca, entre seus predicados, era  pianista , formada em universidade africana, seus bens que irá recuperar quando a África tiver um governo democrático. Promete-me presentear com uma pedra preciosa, pois, sua fortuna está toda ela em pedras,  jóias e propriedades.

Passados alguns meses, uma tarde ouço um tremendo barulho vindo da gravação. O Waldemar sai da secção todo rasgado, gritando com o sr, Henry e um dos aprendizes, o Edson, com quem havia se atracado numa luta desesperada, com  xingamentos e ofensas pesadas de ambos os lados. Acalmados os ânimos, Waldemar tenta, em rápidas palavras, me contar o ocorrido: “Esse negrinho sem vergonha e “sua companheira”, (referindo-se ao sr. Henry) querem me solapar, fazem de tudo pra me prejudicar, sabotam meu serviço mas, não vão conseguir nada.”
Conseguem, sim, os dois são despedidos, o sr. Henry é mantido e, por ordem superior, nada mais foi comentado, o fato fica proibido de ser debatido, dentro da área industrial.

Fico com pena do Waldemar, logo depois, fora da fábrica o Joaquim, o imediato do sr. Henry, me conta algumas particularidades dos acontecimentos.
“Modesto, - começa o Joaquim – vc nunca percebeu nada? Nunca ficou sabendo das sacanagens que eles aprontavam?” - não, - respondi,-  sabia apenas que eles tinham “casos” , mas só entre o sr. Henry e os outros dois.
“ O que acontecia, lá dentro, (referindo-se a secção de gravação) é coisa de louco. O Edson, enciumado pelo sr. Henry, imaginava um “caso” com o Waldemar e o sr. Henry, supunha um caso do Waldemar com o outro, o Ademir. E o pior de tudo, vc não sabe, o Waldemar é, também, homossexual.

Trabalho na Shellmar mais um ano, caso com a Myrtes, arrumo emprego no Matarazzo, onde fico 15 Anos, os melhores de minha vida profissional.
Saio do Matarazzo, vou pra Pan Brasil, já como vendedor. Quem  encontro lá? O sr. Henry, muito alegre e contente, disse ter trabalhado na gráfica da revista Manchete, no Rio de Janeiro, que tinha saído de lá porque a revista fechou.
Casou, (?) com uma negra, tinha dois filhos e era feliz.  Poucos meses se passaram, adivinhem quem apareceu na Pan,  pra trabalhar.? O Waldemar, abatido, doente mal vestido, acabado. Converso com ele, me conta que nada deu certo na vida dele, se puder, vai trabalhar muito pra se recuperar. Não fica mais do que alguns meses, vai embora e o sr. Henry, também.

Termino aqui minha narrativa, com uma dúvida, até hoje, um mistério pra mim: a coincidência que, depois de mais de quinze anos, reencontro os dois personagens de minha história e onde foram parar, o Sr. Henry e o Waldemar, príncipe da Mooca. Espero que tenham encontrado um caminho ou, um destino melhor,

Diante da onda avassaladora de fatos relacionados com homofobismo, homossexualismo, pederatismo, com as múltiplas apresentações de peças, shows, telenovelas, radiofonizações de caráter atrativo e pedagógico, explorando estes segmentos, lembrei-me de fatos que, na época não dei a importância devida, mesmo por que, não era muito apropriado a menção  desses fatores em qualquer redação ou menção em papos de esquinas.

Pelos jornais e revistas, pode-se sentir a enorme diferença  nas publicações entre aquela época,  (1940\50\60), e atual, a recorrência de termos que, outrora, por tabus ou receios da opinião pública,  não havia abuso. Simplesmente o redator recorria a um sinônimo ou, eufemisticamente mencionava, num texto qualquer,  rebuscava toda a seqüência da crônica afim de fugir da palavra correta mas, ofensiva aos leitores alheios a esta “ousadia”.

Com a permissão dos amigos leitores, vou  recorrer ao tempo verbal, presente, o que pretendo contar.
Todos os nomes citados são fictícios, por motivos óbvios e pra que eu tenha um pouco mais de liberdade. 

Pois bem, por volta dos anos da década de 1950, na eminência de casar, trabalho numa empresa de embalagens, Shellmar, empresa americana, que esta localizada na rua Pres. Batista Pereira, travessa da av. Presidente Wilson, entre a Moóca e Vila Prudente, conhecida como “ilha do sapo”,  na função de  desenhista. Como vizinhos, temos  uma industria relativamente nova, a Kibon, fabricante e distribuidores de picolés, popularizando a venda em carrinhos, como fazem, atualmente os ambulantes de guloseimas destinadas as crianças.
Temos, também,  a Lorenzetti, Arno, Cia Antártica e outras empresas de porte.

Na Shellmar, no setor de desenho, somos três funcionários, com a grande artista Anna, alemã  que relata a nós, as atrocidade sofridas na Alemanha, perseguida que foi por ser judia. Muito simpática, mas enérgica nas atividades correlatas, como  chefe da seção. O setor de gravação de cilindros, tem, como chefe, o gravador suíço, sr. Henri, altamente técnico, favorecido pelo empirismo,  adquiridos em seu pais.
Os auxiliares do sr Henry, são três, o Joaquim, com mais experiência é o imediato do chefe e os outros dois rapazes,  aprendizes. Os dois aprendizes, Edson e Ademir, são negros, o Joaquim, não. Poucos meses se passam pra eu ficar sabendo que o sr. Henry é homossexual, tem visceral preferência por negros, como parceiros e os dois aprendizes, Edson e Ademir,  são tratados com todo cuidado, respeito, carinho e paparicados por ele, sr. Henry. Os dois membros do pequeno harém do sr. Henry, são simpaticíssimos, educados e muito bem asseados, com vestimentas muito bem selecionadas, só da “A Exposição”.

O ambiente é sempre bem amistoso, há bons papos e boas situações irônicas, como o que aconteceu com um porteiro, Benedito, negro, alto, quase dois metros de altura mas, de uma simpatia quase infantil, tanto é sua inexperiência dos fatos da vida atual. Um dia, passo por ele e noto que está com uma lámina apontando o que parecia ser um lápis. Ele me pergunta: “Seu Mudesto, meu lápis num escreve mais, acabou a ponta e não encontro mais o grafite, por mais que tento cortar essa madeira tão dura... o sr. pode ver se consegue?”  Logo vi que o que ele tem em mãos é a recem-lançada caneta esferográfica, sem gozação, conto a ele e ele fica admirado.

Um dia desses, soubemos que foi contratado mais um gravador, de nome Waldemar Costa, moço de uns 27 ou 28 anos, também negro.
Fomos apresentados, o Waldemar é muito simpático, educado tem, nas palavras proferidas, algo que foge um pouco do português comum. Exprime bem termos poucos usuais, delicada e corretamente, sem fugir de uma conversa sobre qualquer assunto.  É delicado nos gestos, nobre nas atitudes, de uma bondade sem igual, sempre pronto a servir quem dele precisasse.

Como fanático leitor de contos policiais e de mistério,  minhas eternas suspeitas de haver algo de, não errado, mas diferente nos dias que seguem, vou a fundo. Converso com Waldemar e ele se abre comigo.  “Modesto, não sou brasileiro, sou africano, meu nome, Waldemar, é o que recebi na pia batismal da igreja católica da Moóca, onde moro. Meu nome é Faissal, sou um... príncipe, descendo de  família imperial. Meu pai, preso pelo rei Farouk, está sendo julgado por posse indevida do protetorado de sua responsabilidade.
Meu tio, irmão do meu pai, foi fuzilado, perdemos nossos bens e fugimos, eu e minha mãe, viemos para Brasil. Minha mãe, não resistiu a separação, faleceu algum tempo atraz. Estou sozinho aqui, aprendi a gravação graças a minha mãe que gozava de boas amizades, não quis ser mais muçulmana, pra mudar meu nome, fui batizado com o nome cristão, Waldemar.”




Por Modesto Laruccia