sábado, 5 de fevereiro de 2011

Fim de favela

No Carnaval, me lembro tanto da favela,
onde ela, oi, morava...
Tudo que eu tinha era uma esteira e uma panela,
mas ela, oi, gostava...
E hoje eu ando pelas ruas da cidade, vendo que a felicidade
foi a vida que passou...
E que a favela, que era minha e que era dela, só deixou muita saudade,
pois o resto ela levou...

Bons tempos aqueles em que as favelas davam samba; e belos sambas. Atualmente,
nem mais podem ser chamadas de favela. Está se usando, mais politicamente correto, o termo “comunidade carente”.
Mas, aí é que não dá samba, mesmo...
Há mais de vinte anos, quando viemos morar no Brooklin, a favela das Águas Espraiadas cortava, como uma cicatriz, toda região. Do Rio Pinheiros ia ao Aeroporto, e daí prosseguia.
Havia poucas passagens para atravessá-la. Uma destas era a Av. Portugal, ainda com duas mãos. Lembro-me que ela se estreitava, passava-se de carro sobre a ponte, subindo para o Jardim Cordeiro.
Apesar de não ser uma visão agradável, jamais fomos incomodados pelos favelados. De vez em quando, alguém tocava a campainha, pedindo algo e tudo bem.
Mas, a região da Berrini progredia rapidamente. Os terrenos se valorizaram, não havia mais espaço para barracos, cada vez mais empurrados para fora pelos novos edifícios.
Aí, veio a Av. Roberto Marinho e, o que era um rio de tetos de zinco, virou um leito de asfalto, singrado por cardumes de carros e caminhões. Não havia volta, para a favela.
Uns poucos remanescentes ficaram enrustidos, à sua margem.

Mais para as bandas do aeroporto, longe do burburinho da Berrini.
Mas, com a aldeia de Asterix na Gália, cercada pelos romanos, um pequeno núcleo de resistência persistiu. E por bom tempo.
O “Jardim” Edith...
Resumida no final a um pequeno morro (artificial), a favela viu-se cercada pelos imensos edifícios pós modernos de Bratke e Collet.
O Centro da cidade deslocava-se para ali. E a favela resistiu...
Veio a imperatriz de nossas emissoras de TV. E um enorme heliporto. E a favela resistiu.
Grandes shoppings, cadeias de luxuosos hotéis internacionais...O Jardim Edith, do alto de seu morrinho, olhava desafiante tudo isso com indiferença, na sua precária e petulante feiúra.
Davi de papelão e compensado, encarando os Golias de concreto.
Paradoxal e heróica, uma excrescência dissonante na região.
Mas, para tudo há limite. Veio então a Ponte Estaida, convertida imediatamente em cartão postal da cidade, contrastando violentamente com a favelinha ao fundo. Não era mais possível.
E aí, a resistência acabou.
Os entendimentos devem ter sido demorados, com os moradores.

Mas o final foi rápido; Inda pouco lá estava; e quando passei no outro fim de semana, pouco tinha sobrado.
O morro enegrecido, como se uma bomba de napalm ali tivesse caído; umas poucas ruínas restantes.
De noite, uma solitária luz lá dentro. Talvez um único e teimoso morador, disposto a resistir até a morte, ou, mais provável, um vigia do que restou.
Logo, nada mais do estranho morrinho restará; ponto de ouro, cobiçado pelas construtoras, logo será palco de novo e grandioso lançamento, anunciado em todas as esquinas do Brooklin.

E da favela, que era minha e que era dela,
só restou muita saudade, pois o resto ela levou...

Por Luiz Simões

10 comentários:

Arthur Miranda disse...

Beleza de crônica Saidemberg, Favela oi, Favela
Favela do meu coração
Hoje quase mais nada resta dela,
Já não te vejo da minha janela,
e hoje aquela favela
é só ruinas caidas no chão.
Lindo muito lindo, parabèns

Miguel S. G. Chammas disse...

Poética homenagem Luiz!
Me lembrobem desse pedço de nossa Sampa.
Faz muito tempo que por alí não passo, acredite, não conheço a Ponte Estaiada, ms sua cronica acendeu em mim a vontade de alí votar. Farei isso brevemente.

Wilson Natale disse...

Saidenberg:
Desfazem os barracos, e muda-se a favela.Não solucionam o problema.
Uma ponte que já nasceu obsoleta. Vai de nenhum lugar a lugar nenhum.
E mais uma vez o povão miserável, sem condições financeira e sem condições dadas pelo poder público, vai sendo empurrada para rincões distantes.
O local se modifica na região. Mas a vida dos que antestes estavam lá, continua a mesma... E a Globo se apodera de uma porção de terra e a cerca fazendo o seu estacionamento...
Belo texto!
Abração,
Natale

Zeca disse...

Pois é, Luiz!

Bom mesmo será o dia em que as favelas (ups! Perdão: as comunidades carentes) deixarem de existir porque os seus habitantes conseguiram um novo local para viver com dignidade e um pouco de conforto. Bom mesmo será o dia em que as favelas (ups! Perdão: as comunidades carentes) deixarem de existir por não haver mais necessidade delas. Enquanto esse dia não chegar... vamos nos encantando com crônicas tão belas como esta com que você nos presenteou. E vamos nos desen-cantando cada vez mais com os homens do governo que não governam de verdade para os mais necessitados. Que a essas pessoas só reservam as bolsas-esmolas e os restos, restos até mesmo de locais ainda não ambicionados por outras pessoas, estas, as mais favorecidas...

Abraço.

Luiz Saidenberg disse...

Agradeço muito. As favelas brasileiras são um universo sem fim. Como foi dito, elimina-se uma, multiplicam-se outras, como cogumelos, pois o grande problema da miséria nunca é tratado com o devido respeito. E a esses governantes demagogos interessa a manutenção do analfabetismo e ignorância, que lhes colocam nas mãos imensa "massa de manobra". Que é, como "comunidade carente" para favela, um outro nome para nosso povão. E Don Miguel, vc precisa dar uma volta por aqui sim, pois a cidade transforma-se violentamente nesta região. Abraços.

Soninha disse...

Olá,Luiz!

Embora eu também tenha saudade dos tempos de outrora, quando podíamos andar pelas ruas sem medo e quando não tinham muitos prédios, ainda su a favor do progresso...
Enteno que, pelo próprio crescimento das cidades, os perímetros acabam abrangendo o alto...cresce-se para cima e para os lados, empurra-se daqui, ajeita dali e os centros urbanos se ampliam e desapropriam...
É a lei do "progresso" ditando normas.
Que pena que os orgãos governamentais se esquecem de cuidar dos menos favorecidos e fingem que não os vê...
Durma-secom um barulhos destes, nãoémesmo?!
Adorei seu texto!
Obrigada.
Muita paz!

MLopomo disse...

Para se acabar com uma favela é muito fácil... É só chegar numa moradora, que tem filho e não tem marido, é perguntar: Quer uma casinha de alvenaria para morar com seus filhos? Então é só colocar fogo no barraco e pronto. Foi o que aconteceu com uma favela na AV Dr. Cardoso de Mello na Vila Olímpia anos 1960. Dito pelo próprio dono do terreno que não conseguia tira-los de lá. No dia seguinte o terreno estava cercado e pronto. Aquela favelinha que restou ali na Berrini resistiu muito, e meu caminho quando vou para minha casa. E na brincadeira dizia para minha mulher. Esta demorando para essa favela ter um incêndio. E um dia nos noticiários da TV, vi a noticia que os barracos viraram cinzas.

Laruccia disse...

Muita poesia, encantamento, paixões alucinadas e por aí a fora. Sua escrita, Luiz, poéticamente, contas a resistência de núcleos da pobresa e miséria a desaparecer. Seu texto, impecável, sublime e encantador, explorando o lado sentimental da situação, deixa um sabor nostálgico, fugindo totalmente da realidade. Realidade cruel que submete comunidades a situações de desamparo, carentes das mais elementares nescesidades do ser humano. Há poucos anos atraz, estive no Rio,(depois de décadas) e senti uma tremenda angústia tamanho o crescimento das favelas em todas as direções. É uma verdadeira chaga no horizonte de nossa sociedade. Mas, estamos aqui pra apreciar sua escrita que é por demais encantadora, repito, muito bem distribuida nos seus parágrafos, num progresivo constante da resistência de seus ocupantes, docilmente tratados por vc, dando a entender que elas, desaparecendo (as favelas), é pra seu próprio bem. Parabéns, Saidenberg.
Modesto

Luiz Saidenberg disse...

Muito obrigado, e muito especialmente ao gentil Modesto. De fato, a favelinha estava completamente deslocada na região, como uma ferida exposta- símbolo das mazelas paulistanas. Não podia ficar ali, mesmo, e hoje está completamente terraplanada. Breve, novas construções, mas não sei o que serão. Grande abraço.

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Luiz, como sempre a tua brilhante pena rabisca textos espetaculares, só me resta complementar com um velho samba que diz: "Favela oi, favela, favela que trago no meu coração, ao relembrar com saudade, a minha felicidade, favela do sonho de amor e do samba-canção", parabéns, abraços, Nelinho.