domingo, 2 de janeiro de 2011

Trianon, amor e moqueca

Antes de minha partida para a mágica terra da Bahia (isso lá pelos finais de 1973), tinha por costume passear na Avenida Paulista, admirando os poucos casarões que ainda se mantinham em pé, resistência incólume de uma época dos senhores barões do café, industriais, novos ou velhos ricos que ali se instalaram. A arquitetura era de um bom gosto inigualável em todas as épocas. Eram mansões, palacetes, vilas que frequentemente tinham a assinatura de algum grande engenheiro estrangeiro e seguiam a tendência européia do "art-noveau" e do pós "bélle-èpoque" que eu não me cansava de admirar.
Quando me cansava, seguia para o parque Trianon, recanto de mata preservada, com uma fauna e flora surpreendente, em pleno coração financeiro da paulicéia. Gostava de admirar as preguiças em suas lentidões, penduradas nos galhos das árvores, os peixes nos lagos artificiais no centro do parque, a ponte de madeira sobre a Alameda Santos, que divide o parque em duas metades.
O velho parquinho infantil, onde também brinquei nas balanças, gangorras e escorregadores, junto com outras crianças e suas babás (eu ia só), enfim, me divertia. Graças a Deus ainda há quem preserve aquele espaço natural da "natureza" (vale a redundância) e nenhuma "cabeça pensante" não teve idéias maquiavélicas contra ele (será?).
Foi também lá, na Paulista, que conheci a minha primeira esposa e num rápido romance me casei, não sem antes de um brevíssimo namoro, tendo o Trianon por cenário.
A dona Elisia (esse é o nome dela) trabalhava como doméstica de um casal de idosos residentes no Conjunto Nacional (eram judeus) e tinha muita liberdade, dado à sua extremada responsabilidade e atenção que denotava ao casal. Na verdade, tinham-na como se fosse uma filha.

Eu a conheci em uma festa de aniversário no Itaim Bibi e passamos a namorar, imediatamente. A Lia (esse o seu apelido) é uma cozinheira excepcional (principalmente da culinária baiana). Em um de nossos vários encontros ela me perguntou se eu gostava de moqueca de peixe.
Disse-lhe que não conhecia tal comida, mas não me oporia em experimentar. Qual não foi a minha surpresa quando, num determinado dia da semana (não me recordo qual), ela surge na entrada do Trianon portando um embrulho que fazia evidenciar uma travessa com algo ainda quente e, me olhando fixamente, disse: "Agora você vai comer uma moqueca baiana, atolada na pimenta...".
Minha surpresa dissipou-se ali, quando sentamo-nos num dos bancos de pedra, próximo a uma estátua de Brecheret por testemunha e, ao desembrulhar o tal pacote, lá estava a mais suculenta e saborosa moqueca de peixe à baiana.
Tal iguaria merecia um acompanhamento à altura, e foi o que fiz. Num salto, fui até o Terraço Fasano e adquiri uma garrafa de vinho tinto (o mais barato, em face de minha "dureza") e que, depois de relatado ao gerente, que achou interessante a história, presenteou-me, não sem antes conferir a veracidade do fato, o que foi feito pelo seu garçom.
Mesa posta (ou melhor, banco posto), a travessa com a moqueca, o vinho, dois copos (da Nadir Figueiredo, gentilmente cedidos pelo Fasano e que foram devidamente devolvidos), faltou o principal. Prato e talheres. Mas não estávamos nem aí para esse detalhe, digamos crucial. Perguntei se haveria problema em comermos com as "mãos", e ela disse que não. Então... "mãos" à obra, literalmente.
Comíamos e bebíamos o vinho quando dois policiais militares aproximaram-se e nos aplicaram um sermão daqueles. Quem passava por ali se detinha para ver o desfecho do "enquadramento". Os policiais ainda não tinham se "tocado" na moqueca (pensavam que era um lanche qualquer), quando um deles perguntou o que era que comíamos. Respondi-lhes: "Moqueca de peixe à baiana... quer experimentar?" Não me dei conta do atrevimento do meu oferecimento, mas o praça não se fez de rogado e experimentou uma boa "mãozada" da moqueca e, pasmem, ele gostou e ainda incentivou seu colega a experimentar, o que foi feito sem maiores cerimônias.
Os guardas experimentando, nós (eu e a Lia) também comendo e a pequena aglomeração de pessoas apreciando o banquete (muita gente ali com água na boca). Quando o policial se deu conta e viu o burburinho de pessoas, deu ordem de "circulando...", e nos dispensando com a advertência de que ali não era lugar para refeições, mesmo que fosse tal refeição tão gostosa como aquela (e tava, viu!). Permitiu-nos o término do banquete, com outra advertência (mais branda, ainda) que, de uma próxima vez, procurássemos um local mais apropriado e que não nos esquecêssemos de convidá-los (isso dito em surdina). Deu-nos seus nomes e os dias em que prestavam plantão por lá.
Infelizmente não houve outra moqueca de peixe à baiana (pelo menos lá no Trianon, não).
Terminamos o nosso jantar a dois (com as mãos meladas pelo dendê da moqueca, somada à farofa), recolhemos os restos (só sobraram as espinhas), fomos nos lavar no aquário mais próximo e acondicionamos o que fosse descartável em uma lata de lixo qualquer da redondeza, o que invaria
velmente atraiu alguns gatos vadios da região.
Voltamos a sentar no mesmo banco, agora para digerir a refeição e uns poucos amassos (com cuidado para não causar indigestão convulsiva), quando, lá ao fundo, os dois policiais estavam retornando de sua ronda pelo parque. Cruzados os nossos olhares, e num misto de entendimento recíproco, adiantei-me em antecipar o convite para a próxima moquecada em local e hora a serem previamente estabelecidos (o que, infelizmente para os policiais, não aconteceu).
Fim da noitada, levantamo-nos e nos dirigimos para o Conjunto Nacional, para que Lia fosse descansar, não sem antes passar pelo Fasano e devolver as "taças" da Casa Nadir Figueiredo, acompanhado de um singelo agradecimento de nossa parte. O Fabrizio Fasano (acho que foi ele mesmo) ficou admirado de nossa aventura e nos elogiou muito (mas não nos convidou para uma noite de massas em seu restaurante, que pena), parabenizou-nos pelo feito, achando ele que aquilo seria uma coisa do outro mundo, nos incentivando a sempre exercermos essa liberdade.
Como havia dito anteriormente, outra moqueca no Trianon nunca mais. As próximas que se sucederam foram preparadas em solo baiano e devidamente degustadas em uma mesa de uma sala de jantar, desta feita com o resultado de nossa efêmera união: nossos filhos.

Nota: Apesar de hoje estarmos separados, mantemos uma aproximação respeitosa e, ainda hoje, nos deliciamos com as moquecas de dona Lia, recordamos esse episódio maluco e rimos bastante.

Por Nelson Assis

7 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Nelson meu amigo bixigano, já isse por diversas vezes, quero estarvivo para te acompanhar, quando vieres a sampa, pelos pontos do Bixiga que mais te marcaram, o Trianom será um deles.

Arthur Miranda disse...

Amigo Nelson, já me deliciei com uma moqueca de peixe à baiana, em Feira de Santana na casa de amigos, e confesso que é coisa que não se esquece facilmente, e então essa sua historia me trouxe de volta o sabor da moqueca. Obrigado pela saborosa historia, espero que você possa revivê-la muitas vezes aí pela Bahia. O chente.

Soninha disse...

Olá, Nelson!

Que delícia! Moqueca de peixe é tudo de bom ponto com...Saboreá-la no Trianon, em boa companhia, é melhor ainda!
Que legal sua história!Adorei!
Obrigada.
Feliz 2011!
Muita paz!

MLopomo disse...

O Trianon.Um Passeio. Um Romance. Uma Moqueca e um Amor. Dizer Mais o Que?

suely schraner disse...

Esse piquenique continua rendendo muito até hoje. Delícia de texto!

Modesto disse...

Trianon, Fazano, moqueca, Boxiga. Misture tudo, deixe em repouso, aqueça em fogo brando e, por fim, entregue as mãos do Assis e teras um prato em formato de crônica, delicioso. Parabéns, bixiguense ingrato, falso baiano e autêntico escritor. O Braz te saúda.
Modesto

Wilson Natale disse...

Nelson, pedaços deliciosos da vida que viram retalhos de lembranças boas de se lembrar.
E que fome este texto me deu, Nelson!
~Que 2011 seja um ano de muita paz e prosperidade!
Abração,
Natale