domingo, 9 de janeiro de 2011

O guarda-roupa

Quando o assunto era televisão, só se falava na “Tiazinha”. Então fui ver se a tal Tiazinha estava com essa “bola” toda. Ri e disse a mim mesmo a frase batida: “Nada se cria. Tudo se copia”.
Ouvi um trecho da conversa do meu tio com os amigos:

Pascà: - “Você deixa tudo isso à mostra”?
Titio : - “Não mesmo! Escondo tudo no compartimento secreto do meu guarda-roupa.”
Arregalei os olhos e na minha cabeça formou-se um turbilhão de pensamentos – “Um compartimento secreto? Onde fica? O que será que o “zio” esconde lá?” Ardia de curiosidade.
O guarda-roupa foi sempre considerado um trambolho. Uma velharia
a ser despachada o mais rápido possível. Mas, quem iria querer um traste daquele? Ninguém. Por isso, ele foi ficando no quarto do meu tio Amedeo.
Hoje, o meu olho de conhecedor o define como uma antiguidade do início do século XX e acredito que alguém certamente pagaria uma fortuna por ele.
Para meus avós ele custou quase nada. Foi comprado numa casa de móveis usados e colocado no quarto do titio, na Mooca.
Era um móvel enorme, em dúbio estilo “Diretório”, de madeira de lei laminada em imbuia marchetada com madrepérola. Tinha duas portas, uma estreita e outra larga. Abaixo da porta estreita havia duas gavetas pequenas. Sob a porta larga, em cuja frente ficava um enorme espelho oval bisotado, havia uma gaveta grande. Os puxadores eram belíssimos: estrutura de bronze formando folhas de louro, sustentando “biscoitos” de alabastro. Mas, nos anos 50 este guarda-roupa era uma velharia que ninguém queira. E, como era de se esperar, nos anos 60 ele foi parar no depósito de algum grupo de assistência social.
Titio nunca iria contar onde ficava o tal compartimento secreto. Então, o jeito era eu mesmo xeretar no guarda-roupa e encontrá-lo.
Achei!!!
Examinando as gavetas percebi que algo estava errado. Olha que olha, notei que as laterais das gavetas eram altas e que o fundo das gavetas menores era normal, mas o fundo da gaveta maior era mais raso. Retiro o gavetão e descubro o compartimento secreto.
Num espaço de cerca de seis centímetros, entre o fundo do guarda-roupa e o fundo da gaveta, veio à luz todo o universo erótico do meu tio!
Ali, diante dos meus olhos, revistas de nudismo, naturismo; pequenos livretos franceses com fotos de sexo explícito. Livros de “leitura pornográfica”. Dois baralhos pornográficos. Maços de fotos de mulheres nuas em poses provocantes e, embrulhado em papel de seda, um maço de fotos de uma mulher que iria assombrar as minhas fantasias eróticas desde a pré-adolescência ao início da idade adulta. Fiquei fascinado por essa mulher. Mais tarde, soube-lhe o nome: Era Bettie Page – a mais famosa pin-up de todos os tempos!
Foto a foto, Bettie passou diante dos meus olhos. Sumariamente vestida, provocava mais eroticidade do que as fotos explícitas. Um mulherão com cara de menina (menina muito má, por sinal) ameaçando-me com o seu chicote, provocando-me com poses insinuantes... Convidando-me para algo que eu não sabia... Eu fui me perdendo nesse mundo novo e imaginário das sensações que não compreendia bem, enquanto o meu corpo respondia ao estímulo daquelas fotos.
Bettie Page, de repente, tornou-se a rainha do meu mundo interior.
Eu estava feliz nesse meu mundo, junto com a Bettie, quando o meu tio entrou no quarto. Um forte tapa na minha nuca fez Bettie Page desaparecer.
Sem poder gritar ou fazer escândalo, pois isso provocaria a descoberta dos seus pecadilhos, titio agarrou a minha cabeça e disse no meu ouvido tudo o que tinha direito. Olhou para a foto de Bettie que ainda estava em minha mão, tomou-a de mim e afastou-se. Ele ia dizer algo, mas calou-se magnetizado pela foto. Segundos depois, como se nada tivesse acontecido, ele olhou-me, abriu um sorriso e disse-me: “Chista femmena è da impazzire nu uomo!” (“Esta mulher é de enlouquecer um homem”).

Enquanto titio falava sobre a Bettie Page, fomos guardando tudo no compartimento secreto. Compartimento ao qual eu passei a ter livre acesso...
Nos anos 60, eu ajudava a colocar as coisas do meu tio no seu novo e moderno guarda-roupa. Riamos às lágrimas. É que o velho trambolho fora levado embora pela assistência social, vazio e sem ser desmontado. Mas, tio Amedeo havia esquecido de esvaziar o compartimento secreto. Ríamos ao imaginar a cara das “carolas” ao se deparar com toda aquela “immondizie” (imundície)...

Por Wilson Natale

18 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Bettie Page...comovente lembrança de uma diva do passado, a quem nem eu conheci, a não ser de nome...minhas divas eram mais eróticamente explícitas: Brigitte, Lolô, Sophia, Marylin, Pascale Petit...Where are they, now? Onde estamos nós? Abraços.

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Acredito que todo homem tem este tipo de segredo...Todo menino ou adolescente, de hoje e de ontem, guarda seus secredos eróticos, em seus locais secretos (não tão secretos assim, pois as mães sempre encontram, mas, respeitam e não contam que já sabem).
Lembro das revistas de meu irmão... Entre as de esporte ou álbuns de figurinhas, tinha este tipo de revistas também...
Meu filho, quando adolescente, também tinha revistas da play boy “escondidas”...eu sempre as encontrava, mas, deixava no lugar e respeitava seu segredo. Faz parte da vivência dos meninos esta situação.
Bacana sua lembrança, Wilson.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Wilson, as "leituras proibidas" sempre foram a grande tentação para os meninos rapazes e até para os adultos naqueles tempos de mais severidade.
Me lembro que em casa essas revistinhas não tinham condição de serem admitidas, então, guardava as minhas junto com as de outros colegas nas casas deles.
A primeira leitura mais "forte", que eu fiz em minha residencia foi um livro com o titulo de "Galatéia e o Fantama" de Mario Donato, era um liberalismo tão sutil que eu precisava ler 3 ou mais vezes cada capítulo para achar que tinha entendido algo.
Valeu tua memória, pricipalmente pelo guarda-roupas antigo tão bem descrito.

Arthur Miranda disse...

Natale,
Aos 14 anos tive um baralho com mulheres nuas o qual trancava a sete chaves, mas depois fui para o seminário e tudo ficou esquecido, e eu nunca mais soube dele.
Também as minhas divas, foram outras, Eliana Macedo, Odete Lara, e Sophia Loren, pois nunca fui muito fã de mulheres muito Vamps. Mas parabéns pela narrativa, pois me fez recordar minha juventude.

Luiz Saidenberg disse...

Consultei o Google agora, e Betty era mesmo um peixão. Morreu, aos 85anos, em 2008. Sic transit gloria mundi !

Wilson Natale disse...

A TODOS: Bettie Mae Page _ Betty Page era a Rainha das Pin-up. Era a grande estrela dos calendários e Posters das borracharias e oficinas mecanicas. Betty encarnou a "bad girl" - menina má nas suas poses e levou para os calendários o estilo "Bondage"- submissão. Era uma "dominatrix" desejada por meia-américa.Além dos posters e calendários, circulavam as "poket's photos" - fotos de bolso que se disseminaram por todo o mundo.
Betty era uma "Diva de Papel". Suas fotos semi-nua ainda fazem muito sucesso na América. Virou "cult". Fez muito pocucas fotos nuas e seus "clips" são raridades. Naqueles tempos em que havia "pouca ocasião para fazer o ladrão",nos contentávamos com essa meniná má,dominadora e devoradora de corações feita de papel.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

SONIA,MIGUEL E ARTHUR: Adquirir "pecadinhos" durante a juventude até que era fácil. Escondê-los é que era o problema.
E, com certeza minha mãe e vovó sabiam do segredo meu e do meu irmão ( um dia eu conto essa história hilária) Tanto que um dia o meu pai deu-nos de presente duas caixas com seus cadeados-segredo.
Em tempo: Meu irmão guardava seus "peccati" em uma velha mala do primário e, eu, Os colocava dentro de um velho álbum de discos 78 rotações. Em vez dos dicos, lá só tinha sacanagem(risos). E vocês sabem, um álbum de discos no quarto, em cima do guarda-roupa, quando todos os outros estavam na sala, dava para desconfiar.
Abração,
Natale

Luiz Saidenberg disse...

Bettie seria uam santa, comparada com as pin ups das fotografias de hoje. Não era explícita, e por isto mais provocante, ainda mais naqueles tempos de repressão. Era o mal, il Peccato,Il Diavolo, severamente condenados pelos padres, que dominavam tb a educação, na maioria das escolas.

Modesto disse...

Natale eu, com quase 79 anos não posso nem ler mais a respeito, tamanha angustia que me dá por estar chegando a "vechiaia" (velhice). Gostava de ver estas fotos porque elas não estavam to- talmente nuas. Elas, os "modelos", sempre deixavam alguma coisa escondida pra que tivessemos o direito de imaginar e sonhar mais. Quando vc ouve uma música que gosta muito, vc tem o direito (o compositor te dá)de extravasar seus delírios ao seu bel prazer. Quando vc lê um livro e gosta muito dele, o resultado é o mesmo, vc imagina cenários, imagem dos personagens etc e tal.
Nesta época atual, nem Plai- Boy consegue algum "milagre". Só se ouve falar em "banda-larga" invês de... larga.
Mi apiacciuto assai il vostro lavoro, Natale, auguri.
(gostei muito do seu trabalho)
Parabéns.
Modesto

MLopomo disse...

Natale. Esse guarda roupa é igual ao que tínhamos em casa, (Sem tirar e nem por) fruto do espolio de minha falecida mãe italiana, que veio com ela da Itália. Durante muitos anos ele foi um móvel relíquia de casa. Isso desde o inicio de 1940 até o ano de 1986, quando ele não tinha como subir na parte de cima do sobrado, e teve que mudar de dono que já babava por vontade de possui-lo. As residências de hoje não respeitou a existência daqueles “Trambolhos”. Durante muitos anos aquela gaveta tão bem descrita por você, com fechadura de bronze e chave especial para ela. Aconteceu algo incrível: Quando meu pai morreu, fui pegar os documentos para suas exéquias, ela estava fechada e era uma gaveta secreta dele meu pai. Só ele sabia onde estava a chave. O negocio era arrobar e destruir um pedaço de uma verdadeira obra de arte. Falei para minha Tia Margarida o que ia fazer e quando ela foi comigo ate o móvel dei pela ultima vês um puxão e ela se abriu e, quando vi a chave estava dentro da gaveta. Minha tia uma espírita de muitos anos me chamou para outro quarto, e disse. Mário: seu pai brincou com você. Enquanto o espírito não vai para o lugar que tiver que ficar ele fica rondando a moradia e brinca com seus entes. Pode crer. Isso aconteceu no dia 30 de agosto de 1962.

suely schraner disse...

Pior eram os "catecismos" do Carlos Zéfiro, que circulavam dentro de inocentes bíblias sagradas...
Bacana as suas lembranças!

Wilson Natale disse...

Saidenberg: Tudo o que é implícito causa mais furor. Geralmente a realidade mata o sonho e destrói a fantasia.
E os padres e catecistas tinham razão. Todo esse mateial "diabólico" fazia mal à alma, à saude mental e, pior, à saude física: Podíamos ficar tuberculosos,ou ver crescer pêlos na mão... Ahahahahahahaaaaa!
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Modesto: "La vecchia ce stà dentro noi" (A velhice está dentro de nós). Ou seja: Independente do corpo, um só envelhece se perder a juventude interior. Portanto, mio caro, não é esse o seu caso! Tu sei e sarà sempre un giovanotto.
E Bettie junto com as outra moças das "fotos proibidas" fizeram a nossa alegria e "qualcosa in più".
Eram mulheres lindas em fotos sem retoque ou photo-shop.
E, semi-nua elas provocavam uma revolução no nosso imaginário erótico.Elas nos atraiam mais pelo que não mostravam.
Está certíssimo o velho ditado vitoriano, tantas vezes repetido por Elizabeth Taylo: "Insinuar, sim.Mostrar, nunca"!
Frase certíssima! Afinal, muita coisa deve ficar por conta da imaginação.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Lopomo: Hoje em dia um "trambolho" daqueles vale, no antiquario, cerca de 16 mil reais. Já pensou?
E, realmente fazer uma mudança carregando um guarda-roupa desses era um inferno! Quando mudamos do sobrado para a casa térrea ele veio desmontado. E demourou-se horas para fazer isso. Não era apenas montado a parafuso. Tinha também "sapatas", encaixes e cada parte "pesava uma tonelada". E o espelho tinha mais de 1/2mm de espessura.
Veio desmontado do sobrado para a casa. Mas foi embora montado.
E não duvido que seu pai tenha feito essa brincadeirinha com você. Afinal a vida continua.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Suely: Você nem imagina a quantidade de métodos de camuflagem que inventávamos! Dentro de bíblias, atrás de quadros;embrulhados e preso com esparadrapo sob fundo de gavestas...
Eu andei comprando muita literatura de cordel - que era bem barata - somente para aproveitar a capa e camuflar os "catecismos". Deixava-os alí, na estante de livros do meu quarto esta linda coleção de "literatura de cordel" (risos)...
Abração,
Natale

Luiz Saidenberg disse...

Que peccato, que nada, Natale. Essas coisas só faziam bem à saúde. E vc não ouviu o ex Ministro da Saúde?- Não menos de cinco ejaculações por semana...Sexo só faz, e fazia, bem...menos para os recalcados padres!

Wilson Natale disse...

Saidenberg: Com certeza era muito salutar. Mas você há de convir que toda aquela mitologia sexual acabava por nos induzir a "straparsene una". E deixou lembranças hilárias. Como o padre, no confessionário, perguntando-me se eu praticava a tal solitaria voluptia... Quase morri de tanto rir.Achei a palavra divertida. Pois, de Latim eu não entendia nada.Ahahahahahaaaaaa!!!

MLopomo disse...

Natale o bicho ficou no quintal. Dias depois vendi o trambolho, por uma nota boa. Valeu a pena.