domingo, 5 de dezembro de 2010

Porcelanato, o piso

Nota: texto sem edição, original do site SPMC
Na inesquecível "Noite das Redondas", muito bem orquestrada pelo Miguelão, em meio a degustações e beberagens, batemos um bom papo, onde contei um fato ocorrido no dia anterior, 20 de maio, que queria dividir também com todos aqui.
Entre tantas ocorrências a cercar e sacudir nossa memória, que insiste
em adormecer e nós, teimosamente, recorremos a ela, sacudimos a poeira do tempo pra trazer a contemporaneidade, um pouco de sua realidade. Nessa tentativa não nos preocupamos muito em observar nosso redor. Será que há algo de relevância, merecedora de uma análise mais apurada pra um desenvolvimento textual?
O leitor quer saber de épocas distantes em que, sem ser testemunha ocular, conhece outros tempos através de nossos escritos, na nossa intenção de mostrar um relato fiel de um passado anterior ao seu nascimento e não de fatos contemporâneos.
Mas, o que aconteceu, há poucos dias atrás, em nossa querida cidade de São Paulo, merece registro.
No mês de dezembro de 2007, resolvemos trocar o piso de nossa sala de jantar e cozinha, necessidade esta, imediata. Trocamos o velho piso, de quase quarenta anos, por um moderno. "Porcelanato", pomposo nome que, só sua menção já causa admiração, subentendendo que se vai pisar, agora, sobre "porcelana". Ledo engano.
Colocados, com devido cuidado e observações dos revendedores, depois de trinta dias, começou a aflorar manchas em sua superfície. Contamos, mais ou menos, dez peças de 40x40 cm que estavam comprometidas.
Faço a devida reclamação ao fornecedor e este me encaminha, por telefone, junto ao fabricante do material. Depois de alguns dias recebo a visit
a do técnico do fabricante, senhor Antonio Carlos, 60 anos, grisalho, estatura mediana e um apetite voraz pela verbosidade.
Traz uma maleta, do tipo usado pelos médicos. Abre, simultaneamente, a maleta e a boca. Daquela, retira alguns frascos de produtos químicos que servem de esteira pra seus argumentos e desta, que levou em torno de três horas, as cansativas digressões defensivas ao produto, deixando pra nosso entendimento, um misto de exposição de conhecimentos com mal disfarçada intenção de não atender o pedido de troca do produto. Na defesa de seus propósitos, deste tempo, gastou duas horas, e o restante foi uma verdadeira exposição de situações pessoais, contadas com riqueza de detalhes tão íntimos que, em dado momento, cheguei a pensar, no delírio da narrativa, por parte do Antonio e a embriaguez que a audição me provoca, que o conhecia há longo tempo.
Passa duas horas de explanação sobre as qualidades do produto, afirmando que a Myrtes usou produto agressivo na limpeza do chão e a Myrtes já meia sonolenta (dez horas da manhã...), nega. Em virtude da peroração inacabada do profissional, sugiro um café, e minha esposa atende, imediatamente, percebendo minha artimanha em abreviar o fim do atendimento (ou do sofrimento). Na cafeteira italiana, a rubiácea sai em poucos minutos, colaborando com nossa intenção. Antonio sorve a bebida num tempo suficiente pra degustar com satisfação, senta na cadeira (estava ajoelhado) sem ser convidado, assinalando uma dissertação mais prolongada, preocupando nosso comportamento, não como anfitrião, mas como recepcionista educado. Quando estou decidido a interromper a fala, numa atitude de intérprete de boleros mexicanos dos anos cinquenta e o semblante expressivamente patético, Antonio puxa um cigarro, me oferece (aceito, não sei porque).
Com cigarro no cinzeiro, as duas mãos segurando os joelhos, dá um longo suspiro e começa (penso: eu mereço, meu Deus, eu mereço...):
- Dona Myrtes, senhor Modesto, hoje estou muito triste (lá vem bomba, pensei...)... Ontem minha mulher me pôs pra fora de casa...
- Não, não... - intervém a Myrtes, reagindo repentina e inconsciente
mente, como se ela estivesse esperando sua vez, nas falas da dramaturgia doméstica, tamanha expectativa provocada pelo comportamento do nosso "herói". Ele entendeu a negativa da Myrtes como protesto contra a atitude da esposa, enquanto que a Myrtes queria que ele parasse e fosse embora, pô...
- Calma, dona Myrtes, não saí assim sem mais nem menos, não... Fui sincero, disse a ela que não sabia ainda se a filha era realmente minha... Que minha aventura tinha acontecido há quase vinte anos e...
- E sua mulher - intervi - põe você na rua por causa disso?...
- É...
- E você queria que ela fizesse o quê?... - intervém o setor feminino, surpreendido - que ela desse uma festa e convidasse sua filha pra passar uns dias com vocês, conhecer melhor o novo membro da família?... Aôôô... - fala a Myrtes, juntando as cinco pontas dos dedos, batendo na testa - que tem na cuca, Miojo?...
A partir desse instante, querendo ou não, estávamos envolvidos num dramático relato familiar de uma pessoa que havíamos conhecido a poucas horas. Antonio continua:
- Quando viajava pelo sul, em Porto Alegre, conheci uma gaúcha, casada, com filhos, que de imediato me acolheu em seus braços... E eu, fraco, cedi.
- Fraco...? - interrompi - Isso é muita força... De vontade, pô! Se isso fosse sinal de fraqueza eu, com cinco filhos, estaria anêmico...!
- E tem mais, minha filha (a legítima) estava pra casar, me procurou no hotel e pediu pra eu ficar até ela casar, depois...
Nesse momento pensei estar ouvindo a "5ª" do Tchaikowski, chamada "Patética", que ele compôs pouco antes de se matar, tamanha mortificação.
- Pois é, Modesto e Myrtes (já íntimo...), 32 anos de casado e o pior...
- Tem pior, ainda?
- Tem sim, Modesto, a filha gaúcha...
- Já está confirmado no DNA?
- Não. Ela quer vir pra São Paulo e vou aproveitar pra fazer o exame...
- Taí, solucionado, em parte, o "imbróglio"!
- Não! Ela vem pra cá, em férias de 30 dias, e quer passar todo esse tempo comigo... Onde vou pôr essa moça...?

- Com você, no hotel, ora, é sua filha...
- E se não for...?
- Fica com ela, mesmo assim... Sua mulher não te mandou pra "cucuia"? Então...
Nessa altura eu já queria liquidar a "fatura", despachá-lo, pois começo a desconfiar de que ele quer é desviar nossa atenção do problema do porcelanato quando mostrou as fotos da filha e do filho, os dois já casados.
De pé, arrasto ele pra porta da rua, vai andando nos dando uma descrição de sua vida matrimonial, intimidades chulas, tachando sua esposa de fria, desligada, não querendo saber nada de sexo.
- Pudera - respondi - com uma confissão dessa...
- Não, não... Sempre foi assim... Fechada, gelada, indiferente aos meus apelos sexuais, qualquer tentativa de agarrá-la, já vinha com desculpas de "hoje não, estou incomodada, (devia ter três ou quatro TPM por mês...)”, nunca me disse "eu te amo", nunca saía comigo, pra um cinema, teatro, passeio, viagem ou qualquer outra distração...
- E como nasceram seus dois filhos, pô?...
- Isso foi só no começo... Depois...
- Depois você colocou um par de chifres na cabeça dela. - interrompe a Myrtes - queria o quê, porca miséria? Esses homens... Fale com ela de novo, quem sabe...
- Quando minha filha pediu pra eu voltar, até ela casar, os dias que fiquei em casa, uma semana, se tanto, foi uma tortura... Nem olhava pra minha cara, se eu pedia alguma coisa respondia: tá lá... Vá buscar... Ou: não sei... Não interessa. Ela trabalha fora e isso facilita as coisas pra ela... É totalmente independente.
- E você, engenheiro, dando um duro danado, ajoelhado, examinando pisos, como se estivesse pedindo perdão... Por favor, Antonio, me passe o imp
resso com tudo o que você relatou sobre o piso.
Já perto do carro, me passou o folheto e arrematou:
- E agora, Modesto, que faço?
- Antonio, cuidar de pisos manchados é fácil, só trocar a peça, mas, no trato da vida você usou um produto corrosivo demasiado forte e a mancha que provocou é difícil de sair; agora quem vai trocar a peça é sua mulher e você vai ficar com o resultado de uma experiência desastrosa na busca de novas emoções que, a bem da verdade, não tem nada de novo.
Isso ocorre no dia 20 de maio de 2008, em São Paulo, cidade onde tudo pode acontecer e acontece, servindo-se às vezes de nós, como testemunha e partícipe dos fatos, personagens principais do drama ou da comédia.

Por Modesto Laruccia

8 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Caro Modesto, então esse é seu famos "causo" do porcelanato, do qual já ouvira falar.
Como uma secção de conserto- que nem deveria ser preciso, se transforma
numa de psicoterapia, com direito a lágrimas, contrições e a Patética de fundo musical ! Como dizia o poeta, são demais os perigos desta vida!
A propósito, andei provando e adorei uns vinhos de sua região italiana, a Puglia. Leves, ricos e suaves. Primitivo di Manduria, Malvasia Nera...eita lugar gostoso e lindo, sô ! Abraços.

Miguel S. G. Chammas disse...

Mô, mais uma vez ri à beça com esta historia. Acho que terei, sempre, um acesso de risadas, toda vez que ouvir ou ler esse fato que, por si só já é uma grande piada, mas contado por voce fica realmente impagável.

Wilson Natale disse...

Beleza Larú! Rí à beça. Do porcelanato ao outro material - feito com o "chapeu" do touro - só poderia mesmo ter enraivecido dona Myrtes. Já irritada com a história do piso, só podia enraivecer com a bella cornacchia que o homem deu à esposa. Ahahahaaaaaa! Fico imaginando dona myrtes falando no dialetto e fazendo gestos. O homem ia sair correndo.
Abração,
Natale

Arthur Miranda disse...

Modesto que bela situação para uma comedia. Você bem que poderia escrever, acredito que poderia ter dois atos com no maximo quatro personagens. Tenho certeza que seria um sucesso de riso e bilheteria.
A mulher dele na certa queria mata-lo, e só não o fez por ter ficado em duvida, isto é: Sem saber se iria mata-lo a tiros ou a chifradas. kkkk. Te dou os Parabéns
não só pela historia como também pela santa paciencia de aguentar esse Mala.

suely disse...

Modesto:
A semente do relato caiu em campo fértil. Parabéns!

Zeca disse...

Modesto,
texto rico, bem escrito e com a dose certa de humor (chifradas extra-conjugais são ótima receita para o humor, embora as donas Myrtes possam não gostar nem um pouco delas). Só resta saber se esse sujeito, o do porcelanato, não seria um bom ator dramático, contratado pela empresa, para evitar as trocas... hehehe.
Abraço

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Modesto, mesmo já sabendo da história não posso deixar de rir imaginando voce e a Myrtes tentando se livrar do técnico com suas lamúrias, um abraço, Leonello.

Soninha disse...

Olá, Modesto!

Este seu texto ficou famoso, né?!
Rimos muito quando você nos contou, num dos encontraos das redondas...
Já havíamos lido no site SPMC, mas, com você contando, foi hilário demais, não parávamos de rir e de imaginar a situação.
Vendedores espertalhões...disso o Brasil está cheio. Gente que quer nos enganar, nos substimando, pensando que estão conseguindo...
Mas, nos diga uma coisa, Modesto: Afinal, seu piso manchado foi trocado? A empresa lhe deu assessoria? Ficou tudo bem?
Tomara que sim.
Valeu, Modesto.
Obrigada.
Muita paz!