domingo, 7 de novembro de 2010

Vasos noturnos

(Um costume que vai desaparecendo)

Que me desculpem os boêmios e seus monarcas. Mas os “reis da noite” eram os penicos!
Penicos não faltavam nas noites da cidade e da Mooca.
E de penicos eu entendo! Eu os conheci de todo tipo, desde a minha fase fecal (Tive um peniquinho azul) até a atual: Penicos de terracota, de ferro fundido, de ferro esmaltado, de louça, de porcelana, de alumínio e de plá
stico. Penicos tamanhos “P”, “M” e “G” – Não sei se havia penico “GG”. Mas sei que havia traseiro para esse tipo de penico, e muitos. A preferência era pelos penicos de ferro esmaltado, pelo menos até os anos 60.
Em tempo: Nunca chamavam o penico de penico. Era PINICO! E ninguém dizia urinol. Era URINÓR ou URINOLE.
Em casa, penicos subiam e desciam as escadas. Nos quartos, eles tinham o seu local estratégico para uso, colocados sobre tapetinhos de arraiolos, feit

os por vovó. Quando não estavam em uso, eram escondidos sob uma cama ou dentro de um criado-mudo.
A lembrança “penical” mais marcante que tenho foi quando um amigo do vovô, junto com a esposa, veio nos visitar pela primeira vez. Vieram após o jantar. E, lá pelas tantas da noite, vovó resolveu mostrar a casa à mulher. Discretamente minha “nonna” aproximou-se de mim e falou baixinho: “Vai rápido lá em cima e esc
onda os vasos noturnos.” Eu, lendo o gibí do Falcão Negro, sem nenhuma vontade de subir as escadas, opto por gritar para o meu tio Amedeu que estava em seu quarto:
- “Tio, esconde os penicos embaixo das camas que a visita vai subir”!
Vovô e o amigo explodiram numa gargalhada estrondosa. A mulher fez um grande esforço, mas não conseguiu conter o riso. Vovó, vermelha de vergonha, premiou-me com uma dolorosa torcida de orelha, muito bem disfarçada.
Mas, o meu leque de lembranças dessa interação entre humanos e pen
icos é imenso.
Uma vez por semana, pela nossa rua passava o “pentolaio” (consertador de panelas). Vinha batendo com um pedaço de ferro em uma frigideira e gritando a sua cantilena que, jocosamente, tinha um duplo sentido: “Venite signò! Venite ch’i son quà pe’ far nuove di zecca le vostre vecchie pentole! I son quà pe’ chiudé tutte le vostre bucchi!” (Venham senhoras! Venham que estou aqui para transformar em novas em folha as vossas panelas velhas! Eu estou aqui para tampar todos os vossos buracos!)
A cantilena do “pentolaio” fazia as donas de casa enrubescer e provocava

gargalhada. Mal chegava a uma rua, o mulherio o assediava para os consertos. Num instante, panelas tinham o seu cabo trocado, tampas ganhavam novos pegadores e pequenos furos eram vedados com solda. E ele cuidava dos penicos...
Era divertidíssimo ver senhoras desoladas saírem de suas casas ou do cortiço com o penico na mão. Desamparadas procuravam a ajuda do “pentolaio”. Qual um médico, ele examinava minuciosamente o “paciente”. Um pingo de solda na asa de um, ou mesmo uma asa nova; uma ou duas soldas no fundo de outro e pronto! O “doente” estava curado. Ele só não dava jeito em penicos lascados. Não restaurava o esmalte.
Os penicos melhoravam o nosso humor. Principalmente quando um deles rolava por uma escada enchendo o ar com seu som característico. Para se ter um bom humor a semana inteira, nada como um penico cheio, rola
ndo sonoramente pelas escadas e espalhando os seus “tesouros”.
No cortiço, Dona Cinzia pergunta à Dona Zenóbia:
“Que barulhão foi aquele no seu quarto, ontem à noite?”
“Você ouviu? Foi o bêbado do meu marido que tropeçou no penico.”

Cinzia dá uma piscadela para Zenóbia, sorri e diz:
“Foi isso? Pensei que você tivesse derrubado a prataria...”
Caem na risada. Choram de tanto rir.
Penicos também causavam constrangimentos:
Quando um amiguinho “enrolava muito” ao contar o porquê daquele “g
alo” que tinha na testa, sabíamos, por experiência própria, que uma mãe, ou avó histérica, havia-lhe mandado um penico contra a cabeça.
No quarto, S... brigava com a mulher. Começaram a estapear-se. Ele, num gesto brusco, empurrou-a contra a cama. Ela bateu na cama e escorregou para o chão. S... foi para cima dela. Ela não teve dúvidas. Enfiou a mão em baixo da cama, pegou o penico e, sem titubear, deu-lhe uma tremenda “penicada” nos cornos. Com um corte na testa S... foi levado ao Pronto Socorro. Levou três pontos e uma injeção contra o tétano. S... gaguejando e com a maior cara de pau contava a todos que havia caído a
o pegar o bonde andando. E a mulher dele lamentava-se com as vizinhas por seu penico novinho estar todo lascado.
“Conheci” um penico que virou caso de polícia: Dona L..., mais conhecida como Dona Porca, era uma neurótica que veio de Nápoles direto para a Mooca no pós-guerra. Foi morar no cortiço. Toda manhã ela fazia a mesma coisa. E toda a manhã a vizinhança brigava com ela e fazia ameaças. A “coisa” explodiu quando, um dia, a Alda, toda penteada, maquiada, apertada dentro de uma saia justíssima, saiu para o trabalho. Passou junto à janela de Dona Porca, justo no momento em que ela fazia o que fazia sempre: lançar o conteúdo do penico pela janela... E o sonho secreto de Alda, que era tomar um banho de lei
te, dentro de uma enorme banheira de mármore branco, transformou-se na realidade de uma ducha de urina amanhecida. Estava declarada a guerra. Quebra-quebra, bate-boca, ameaça de morte e antes que se chegasse às vias de fato, todo o mundo na delegacia.
Penicos também podiam ser armadilhas: Levantava-se no escuro ou na penumbra e acabava-se por chutar o penico derramando todo o seu conteúdo. Ou então tropeçar nele, cair e ferir-se.
Lá pelos anos 50, os penicos eram dados como presente de casamento. Não, não eram os penicos comuns! Eram penicos nobres de porcelana, ou faiança, importados da França, Inglaterra. Os ingleses eram decorados com rosas
e guirlandas; os franceses eram decorados com paisagens rurais e temas cortesãos. E, pasmem, alguns tinham tampa! Penicos que eram facilmente confundidos com terrinas ou sopeiras.
Eles eram os reis das festas. Penicos repenicavam nos carnavais. Era
m a alegria dos cordões carnavalescos que iam escasseando na Mooca e na cidade. Nos casamentos, penicos cheios com chope e algumas salsichas boiando dentro deles eram passados aos convidados, para que cada um levantasse um brinde aos noivos.
Eles eram também, verdadeiros laboratórios de análises clínicas. Mães zelosas, todos os dias, olhavam dentro dos penicos dos filhos e “analisavam” a coloração da urina, a consistência e a situação das fezes. Prevenir é sempre m

elhor do que remediar.
No fim dos anos sessenta, com o acréscimo de mais um banheiro, ou banheiro no piso superior, os penicos foram-se aposentando de suas funções.
Nos anos setenta, ele virou “cult”. Houve um “revival” dos penicos, que foram adaptados ao gosto daquela década. Penicos esmaltados, com cores psicodélicas, com bolinhas, estrelas, cometas, margaridas com carinhas sorridentes e com desenho fractal. Eles eram usados em suas funções primitivas ou como floreiras. A moda terminou “quando o sonho acabou”. Os Hippies desapareceram dando lugar aos Yuppies...
Hoje em dia restam os penicos infantis. Peniquinhos que perderam a sua

forma clássica. Hoje têm forma de latrina, de carrinho; têm cara e o corpo estilizado de bichinhos. Hoje eles são de plástico, inquebráveis, indeformáveis, maleáveis. E são atóxicos. Não deixam de ser penico. Mas, com certeza, sem o “glamour” dos tempos passados. Sem a majestade dos tempos idos e vividos.
Rei morto, rei posto! Que vivam os banheiros múltiplos e funcionais!

Por Wilson Natale

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale, você continua impagável (e imprestável diria o velho presidente dos maledetos.
Tua estória do "picciatulo" (a graia está correta?) está otima.
Ficou um aroma de quero mais!

Zeca disse...

Ô, Natale, quanta risada seu texto bem humorado e deliciosamente elaborado me provocou! Quem, das nossas gerações, não se lembra dos pinicos, velhos amigos noturnos, sempre por perto pra nos socorrer em momentos de aflição? E também sempre à espreita para, em momentos de descuidos, dar-nos um susto e esparramar seu conteúdo pelo chão? Você lembrou até do barulho que eles faziam quando caiam ou rolavam escada abaixo. Em casa tinha um, daqueles mais rebuscados, de porcelana inglesa e com tampa, que ficava guardado, dentro de uma caixa, sobre o guarda roupas da minha mãe. Os de uso mesmo eram os comuns, de ágata! E aquele, presente - considerado de mau gosto - de uma amiga da minha mãe, acabou um dia, nos idos dos 70, virando vaso de planta! Mesmo sem ter sido usado para sua finalidade primeira, parecia ter poderes mágicos, pois a avenca ali plantada vicejou de tal forma que ganhou local de destaque sobre a mesinha que ficava, entre duas cadeiras de preguiça, na varanda de casa. Desbancou até a begônia plantada numa chaleira de ferro fundido que antes ocupava o lugar de honra!
Texto excelente! Que venham outros!
Abraços.

Luiz Saidenberg disse...

O velho tempo em que todo mundo pedia o penico...em casa, lembro de um, quando era bem pequeno. De àgate, talvez. Mas hoje são peças de museu, às vezes literalmente, como devem ser os do Palácio de Versalhes, se é que não foram destruídos ou utilizados para fins pouco nobres pela ralé, na Revolução Francesa... de qualquer forma, hoje estão extintos, ou em vias de extinção, como um jurássico fóssil. Ainda bem ! Belo texto.

Wilson Natale disse...

MIGUEL: O correto é "pisciaturo" (pronuncia-se "pichaturo")
ZECA penicos por si só são comediantes. Basta a gente encontrar um fora do seu local privado para cair na risada.
SAINDENBERG: Penicos tiveram seus dias de glória. E pensar que cavalheiros e damas francesas, quando viajavam, levavam seus peniquinhos presos a uma corrente na cintura...
Valeu pelos comentários!
Abração a todos.
Natale

Arthur Miranda disse...

Grande Natale. Essa historia de pinicos, me levou de volta ao passado. Lembro-me de que em 1951, ao descer da cama tropecei e caí em cima do pinico e espalhei seu conteúdo noturno pelo quarto para desespero e bronca de minha pobre mãe.
Grande texto, bela e saborosa historia. (mesmo derivada de penicos). PARABÈNS.

Laruccia disse...

Natalle, tu sei un vero mascalzoni, farabuto, pernóstico i ingrato. Porque vc não foi no Gijo, ontem, no "almoço com as estrelas?" Não tem desculpa.
Wilson, sua crônica sobre o "nobre vaso noturno", que teve sua utilidade em épocas não muito remota, é um texto enxuto, (ainda bem!), divertido e com informações sobre o pinico, sua fabricação, estilo, material empregado, não utilizados para aquilo que lhe é destinado e as curosidades e historias que sabemos que esses utencilios sempre proporcionou em todas as famílias. Contadas com sua maestria, rendeu uma leitura agradável, curiosa e alegre, principalmente por fugir do segmento habitual do blog. Parabéns e auguri, fratelo mio.

Wilson Natale disse...

Laruccia, mio bello:
Não estou em São Paulo desde o dia primeiro de novembro. Estou em Porto Alegre, tchê! Volto dia 18. No próximo encontro a gente se encontra.
Abração,

Soninha disse...

Olá, Wilson!

Com seu texto me lembrei das relíquias que nossa família tinha quanto aos vasos noturnos.
Minha avó tinha uns lindos...inclusive, tinha um bem grande, de louça decorada, com tampa e que deixava no quarto reservado para os hóspedes.
Minha mãe também tinha alguns urinóis, um para cada quarto...
Odiava quando ela nos fazia esvaziá-los, pela manhã...putz.
Mas, com o passar do tempo, até eu adotei o famoso troninho, para meus filhos...eram didáticos...tinham ábaco colorido, ajudando as crianças a contar, enquanto faziam xixi...kkkkkk
Boas lembranças.
Valeu, Wilson!
Obrigada.
Muita paz!