terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Máximo

Se alguém estivesse disposto a arrumar encrenca, era só chamá-lo pelo nome verdadeiro.
Assim era o jeito de ser de Máximo Alves de Oliveira, popular Max, que era como ele gostava de ser chamado.
Desde os tempos de escola, vividos no G.E.P.M.N, Grupo Escolar Padre Manoel da Nóbrega, na Freguesia do Ó, praticamente até o fim da vida, Max foi possuidor de um verdadeiro pavor de seu nome de batismo e dos trocadilhos que os colegas e amigos faziam em torno dele.
-Máximo, você é mesmo o máximo!

De tanto ouvir isso, Max passou a odiar o próprio nome exigindo, por conta disso, que todos o chamassem por Max.
Com o passar dos anos, a coisa praticamente acabou transformando-se em um transtorno mental; Max não aceitava, de forma alguma, ser chamado pelo seu nome verdadeiro.
E, é claro, sempre quando alguém reage de forma agressiva e obsessiva em torno de algo, acaba provocando, em muitos, o desejo de provocação.
E assim, Max passou parte de sua vida, vivendo grandes conflitos e metendo-se em muita encrenca por culpa de seu próprio nome e, é óbvio, tudo isso só fez alimentar nele o ódio que o mesmo já sentia pel
o próprio nome e naturalmente a fomentar mais encrencas, o que hoje em dia fatalmente faria com que seus pais buscassem para ele algum tipo de ajuda psicológica, mas na década de 60, na Freguesia, era algo que não passava pela cabeça de ninguém, muito menos na de seus pais.
E assim, nesse conflito existencial, Máximo, perdão, Max tornou-se adulto, sem abandonar essa mania de teimar em não aceitar seu nome de batismo.
Conselhos, falar que Máximo era um nome bonito, que não era nada demais chamar-se Máximo, nada disso adiantava. Nesses descontraídos bate papos entre amigos se, para fazer gracinha alguém falasse mesmo brincando, -Max deixa isso pra lá. Até que seu nome é mesmo o máximo - com certeza ouviria um sonoro palavrão em homenagem a sua mãe.
Máximo, digo Max, casou-se com Joana e, na igreja, exigiu do Padre, na hora da cerimônia, no lugar de Máximo chamasse-o de Max.
Seus três filhos passaram a ser conhecidos como os filhos do Max.
Ano passado, já viúvo, depois de uma longa enfermidade, Máximo, ou melhor, Max faleceu, mas antes de morrer, ele pediu aos filhos e netos que, por caridade, não colocasse seu nom
e em sua lápide da sepultura.
No último dia de finados eu estive no cemitério onde também está enterrado meu pai e, em um dos corredores, vi a sepultura do meu amigo Max, notei também que seus filhos seguiram à risca suas recomendações finais, ou seja, a de não colocar o nome dele na sepultura.
E, na fria lápide estava escrito:
AQUI JAZ. UM HOMEM EXEMPLAR, ÓTIMO FILHO, BOM MARIDO E O MAIS QUERIDO DOS PAIS – SAUDADES DE SEUS FILHOS E NETOS.
O único problema é que todo mundo que lia a lápide saia comentando:
PUXA, ESSE CARA ERA O MÁXIMO.

Por Arthur Miranda (tutu)


Um amor eterno

Como faz toda manhã, Tomás acordou ainda antes de o sol se manifestar. Estava tão habituado ao tempo que, sem olhar o relógio, calculou: 5:15min."É primavera" pensou. Depois, mentalmente, num auto-desafio conferiu o palpite: 5:22min. Levantou-se, e como sempre, cuidou de não incomodar Irma - respeito mantido durante toda a vida de casado, já perto das Bodas de Ouro, daí a três anos. Pé ante pé, passou pelo banheiro, seguiu para a sala, sentou na poltrona frente à tv, sem ligá-la, e pôs-se a preparar para a caminhada matinal de uma hora, exercício que sempre fazia junto dos amigos da mesma faixa etária, pelas cercanias do Parque D. Pedro II, bem próximo do centro da cidade de São Paulo.
Naquela manhã, estava particularmente bem disposto. Aliás, disposição que não se lembrava ter há algum tempo. Com quase 78 anos, a artrose que molestava seu joelho desde os tempos de futebol, não incomodava mais, bem como os desconfortos do ciático, as juntas com ruídos que lembravam castanholas e a tosse pertinaz. Creditou o "milagre" aos dois dias de chuva que lhe impediram o passeio, esse prazer, esse vigor extemporâneo e bem vindo. Continuou sentado, esperando o raiar do dia e gozando a sensação de bem estar enquanto cerrava os olhos para mergulhar nos deliciosos sonhos que sempre o animavam. Ah, seus devaneios...
Esse torpor involuntário, foi interrompido pela presença de Irma que, de mansinho,
sentou-se ao seu lado, procurando um pouco de calor na fria manhã. Com um sorriso amável, juntou seu corpo ao de Tomás, que abriu os olhos a deliciar-se no aconchego, estreitando mais ainda o seu corpo ao de Irma.
"Querida, ainda é cedo... por que você levantou?"

"Oh, Tom! Estou sem sono e, já que você sempre tentou me convencer a andar...bem, hoje acordei com uma disposição sem igual! Você não vai acreditar, Tom: não sinto nada, nada, nada! Parece milagre: minha tradicional dor de cabeça da manhã, a falta de ar, o reumatismo, as câimbras... nem sinal! Estou bem mesmo, querido!"

Irma, sua mulher, ainda trazia resquícios de uma beleza tardia nos traços delicados, de um perfil altaneiro traídos pelos 76 anos com as implicações inevitáveis do tempo corrido. Amava Tomás com uma paixão que poucas mulheres sabem nutrir por tantos anos. Era, sem dúvida, um amor dedicado, inabalável, eterno...
Tomás, ex-atleta, alto, boa forma física, rosto anguloso, dono de um perfil similar ao de um busto romano, sorriu e falou a Irma da sua disposição, ressaltando a coincidência das condições dos dois. Abraçou e beijou sua companheira de tantos anos, com ternura e devoção. Imediatamente, ambos começaram a recordar o passado, o que faziam sempre que surgia uma ocasião propícia, sem a presença de filhos, netos e outros parentes. Ainda abraçados e emocionados com o momento, Irma tomou a iniciativa de iniciar um diálogo como se fora a primeira vez. Conversar era algo que os agradava bastante.

"Tom, lembra do nosso primeiro encontro, na Aclimação, naquele casamento de su
a prima Heloísa, com aquele japonês... como é que se chamava mesmo? Kazuo, né? Onde nos conhecemos... nosso primeiro beijo no escurinho do cine Santa Helena, os piqueniques em Vila Galvão, os passeios de bonde de Santo Amaro até o ponto final..."

"Nossas fugas da eterna vigilância de sua mãe, Irma... Seu pai, querendo saber se eu trabalhava, quais os meus planos - uma mal disfarçada preocupação com o futuro de sua filhinha..."

"Nosso primeiro baile, Tom... A primeira viagem a Santos - com mamãe e papai, naturalmente, rss - o primeiro presente no dia dos namorados... Que saudade!" Depois do namoro, seguiram-se o noivado... o casamento... os filhos... Três meninos e uma menina. Quem diria, hein?

"Tom, lembra que coisinha linda, a Cecília? Meu Deus...Uma boneca! Então, vieram o Danilo, (você queria um menino também), o Milton e o Raul, para completarem nossa felicidade..."

"... E hoje, os quatro já casados - muito bem, diga-se - deram-nos cinco netos para coroar e alegrar nossa existência. Irma, que bem maior poderíamos esperar? Diga-me, querida!"

"É verdade, Tom. E você, sendo um tanto cético em matéria de religião, há de concordar comigo que existe sim, uma divina Providência em nossa união, não é? Tanta ventura, tanta felicidade e um amor profundo como o nosso, só pode ser desejo do Criador!"

"Concordo, é claro. Mas nosso comportamento, o respeito mútuo, as renúncias ante os desafios que tivemos - e não foram poucos, sabemos - bem como a dignidade com que amparamos nossos pais até seus derradeiros momentos; a educação e o esforço para formar nossos filhos...tudo nos levou a um mérito maior. Temos, portanto, o direito de desfrutar dessa paz e tranquilidade!"

" Sim,meu bem. Mas é exatamente esse comportamento que nos colocou nesse privilegiado grupo de bem aventurados. Fomos pinçados da multidão de sofredores e, por isso gozamos, agora, uma existência inusitada."

"Bem, querida, não quero iniciar uma querela com você sobre a questão religiosa. Não é que não acredite, é que...

"Pssssiu! Esqueça, esqueça... Apenas desfrutemos destes pequenos interlúdios tão difíceis de ocorrerem..."

"Olha, Irma, o sol já nasceu...Vou colocar as bermudas. Sabe que estou na ponta dos cascos?Ah, e se você vem comigo, é bom que se apresse, pois a "turma da pesada" já deve estar na pista. E, ai de quem chegar atrasado: receberá uma senhora gozação! rss

"Ah, querido! Estes raríssimos momentos são tão difíceis de acontecer que devemos aproveitá-los ao máximo! Fica só mais um pouquinho? É tão doce o seu carinho... Ademais, nunca se sabe quando teremos outra oportunidade para desfrutar desses encantos... Sem querer ser pessimista, nossa idade não permite uma expectativa a longo prazo... Não vá agora! Abrace-me e beije-me, por favor, querido... Quero sentir seu calor mais e mais... aperte-me, deseje-me como antes! To
más, eu...eu..."

Tomás percebeu que o comportamento de Irma, sem ser surpreendente, era, no mínimo, diferente. Amava a sua esposa - e muito! Agradava-lhe bastante estar com ela. Porém, começou a desconfiar que lhe escondia alguma coisa... Apesar de intrigado, ficou mais algum tempo nesse devaneio inspirador e reconfortante.

"Bem, vamos então, querida. Vou para o quarto vestir as bermudas e..."

"Não. Não precisa colocar bermudas... Fica aqui comigo, amor! Não vamos precisar mais disso tudo... Fica, por favor..."

Delicadamente, desvencilhou-a de seus braços, foi para o quarto e estancou perplexo: incrível acreditar na cena que via à sua frente! Após alguns minutos de confusão, um Tomás lívido, inquieto, abismado, voltou à sala da tv e, ao encontrar os olhos de Irma, então compreendeu tudo...

"Querida... quer dizer que..."

"Sim, meu Tom. É aquilo que você viu: os dois, lá na cama... somos nós. Quando acordei e vi que você não respirava mais, abracei o seu corpo e uma angústia tão grande tomou conta de minha alma. Não pude... não pude resistir: desfaleci. Depois levantei-me e vim para cá.
Olhei para trás e me vi abraçada a você. Então compreendi tudo! Nosso amor foi mais forte...Tão forte que nem mesmo a morte conseguiu nos separar. Por isso, estamos assim felizes,Tomás! Agora temos a eternidade para gozarmos a imortalidade desse amor. Um prêmio mais do que merecido..."

É verdade. O derradeiro e maior de todos os bens que recebemos de Deus, ou quem quer que seja essa entidade superior que rege todos os destinos, é fazer com que deixemos a vida terrena junto de quem amamos tanto. E mais apaixonados do que nunca.

Por Modesto Laruccia

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Praça Marechal Deodoro

Tenho várias lembranças da Praça Marechal Deodoro, em diversas épocas. Mas nenhuma de períodos mais recentes, quando ela virou um ocasional lugar de passagem. Nem sempre foi assim. Vejo-a como um ponto central, o coração da difusa região, uma colcha de retalhos de Santa Cecília, Higienópolis, Barra Funda e até Perdizes.
Ali, no seu complexo monumento ao Marechal, morre a Av. São João. Vem-me um conjunto de flashes desconexos, diurnos e noturnos dali. Não saberia encaixá-los todos, como um quebra-cabeça. Só me resta focalizá-los como numa lanterna mágica: surgem durante um instante da escuridão e len

tamente se apagam.
Pois foi, justamente, algo assim que vi certa vez num daqueles quarteirões, quase na esquina da Albuquerque Lins, no lado Barra Funda da praça. Num terreno estreito e escuro, abrigando alguns jogos e diversões.
Não me lembro dos outros, mas certamente de um aparelho, aparentado com a primitiva lanterna mágica. Um kinescópio, talvez?
Um cilindro vertical, ancorado no chão: punha-se uma moeda e, olhando-se pelo visor, uma cena, pequeno filme em preto e branco, animava-se lá dentro. Coisa que mais parecia ligada não ao século passado, mas ao retrasado, tempo dos irmãos Lumiére.
Na esquina da Albuquerque, a Padaria Palmeiras. Existe até hoje, mas não sei se fazem as maravilhosas empadinhas de palmito com que íamos nos deliciar.
Na esquina oposta, uma pequena drogaria, ou perfumaria, tendo na vitrine uma miniatura da Vênus de Milo, exibia na parede a parábola ilustrada dos dois burrinhos que, puxando em direções opostas, não
conseguiam mover a carroça do lugar, até que unem seus esforços...
Passemos à praça. Outra estátua, bem mais simpática, entre as árvores e bancos, depois da Av. Angélica; um índio, numa prova de força com um tamanduá. A praça era muito tranquila e agradável, mesmo à noite. Encarando a lateral do tamanduá, o confortável Cine Plaza, que fui umas poucas vezes.
À noite, entra um cordão de Carnaval: o povo apinhado nas calçadas e lá vem o bloco, com seus truculentos abre-alas. “Ô abre alas, que eu quero passar!” Junto às paredes, bancas vendiam confete, serpentina e grotescas máscaras de papel machê, com fálicos narigões.
Mais abaixo, todo domingo tinha espetáculo no Circo Piolim. Lá vinha ele, imenso colarinho branco sobre o fraque, nariz de bola e um bengalão. Estava sempre em conflito com o autoritário Tony, o palhaço branco, símbolo do poder e da disciplina. Certa vez, numa pantomima, Piolim “morria”. Para reaparecer como um fantasma, sob um lençol branco. Confesso que fiquei apavorado!
Numa outra época, o lugar do circo é agora um descampado.
Na sua orla, esquina com Lopes de Oliveira, uma grande loja de plantas e vasos. Na quadra anterior, uma loja expunha suas Mercedes Benz e eu já as admirava por suas linhas sóbrias e elegantes, ao contrário dos espalhafatosos carros americanos.

Por ali ficava a Pizzaria Solar, em que fizemos nossa modesta despedida do colegial.
E a Casa Whisky? Como pudemos deixá-la de lado? Falha nossa, mas não sei por que, jamais provei seus famosos sorvetes.
A praça se afunila, está chegando a seu final. Logo à esquerda, quase no final da Gabriel dos Santos, ficava o Colégio de Aplicação, onde estudei. Hoje é outro estabelecimento de ensino, mas a estrutura é idêntica.
Pegado a ele, ficava o magnífico Cine Santa Cecília, que resistiu até o início dos anos sessenta. A Av. Olímpio da Silveira segue, em largas passadas, direção à Água Branca.
Um Minhocão passou por cima de todas essas lembranças, e a praça nunca mais seria a mesma. Nem a cidade.

Por Luiz Saidenberg.

Os relógios da cidade

Uma coisa que se via muito na cidade de São Paulo eram os vários relógios todos eles com números um a dose, sem aqueles riscos que muitos tem com apenas os números 3 – 6 – 9 e 12 e o resto ricos. Naqueles anos 1950, pela manhã quando eu ia da Vila Olímpia até o Brás, os relógios eram os meus amigos a dizer se eu estava atrasado ou não.
Quando descia no Anhangabaú, ia em direção à Galeria Prestes Maia, cumprimentava a estátua de Verdi, à esquerda e, antes de entrar na Galeria, na entrada, o enorme relógio mostrava como eu estava de tempo para chegar ao meu destino. Subindo as escadas rolantes e saindo da Galeria entrando na Praça do Patriarca outro relógio mostrava quantos minutos eu tinha caminhado aquele pequeno percurso. Pela Rua Direita na tinha observado nenhum, mas quando estava no início ou fim da Rua XV de Novembro, à esquerda, lá estava um deles, com seus números em Algarismo Romano. Nessa rua tinha
outros, mesmo porque, ela é uma rua bancaria e homens de negócios tem que estar sempre na hora certa.
E assim por diante. O fato é que, por falta de relógio não se chegava atrasado a lugar nenhum. E por falar em relógio de Algarismos Romanos, um que sempre me chamou atenção, era um que ficava na Avenida São João, esquina com a Rua Libero Badaró, quando termina a Praça Antonio Prado.
É um relógio que está, ainda hoje, em cima de um poste de ferro, sempre muito bem cuidado. Esse relógio ali foi colocado há muitos anos atrás, por um homem. Eu vejo este relógio já faz 56 anos, sempre limpo, e é de propriedade da cidade, presente de um paulistano ou não, que depois de morto teve seu filho como mantenedor do relógio, não só na limpeza como num eventual conserto. Não faz muito tempo, o responsável pela manutenção pedia ajuda
para que algum patrocinador pudesse ajudar na manutenção do relógio, pois que isto tem custos muito altos, razão pela qual pediu ajuda de patrocinadores. Porque será que a prefeitura não assumiu esse relógio,haja vista ser patrimônio da cidade e não bem de uma só pessoa?
Será que é pelo fato de ter que fazer uma licitação, que além de levar, no mínimo, seis meses, sempre tem alguma “mutreta” por trás, motivo de alguém que se sinta prejudicado entrar na justiça?
Vejam por exemplo, os vários relógios digitais que, alem de marcarem as horas marcam também a temperatura, nem sempre correta e que estão nos canteiros públicos, com a imagem em branco, ou então, com alguns números em falta, talvez pela falta de manutenção por ter terminado o contrato e esta difícil a renovação. Porque será que a prefeitura não faz um contrato que vigore para sempre?
Agora, o relógio mais visto por muitos anos, o único não redondo na cidade era o relógio do Mappin. O quadrado, além de marcar as horas para todos nós, marcava também o local de enco
ntros amorosos, de amizades ou de negócios, como lembrou o meu amigo Luiz Saidenberg, num de seus textos. Eu mesmo marquei muitos encontros em determinadas horas, em que a mentira não se enquadrava no papo, porque o “quadradão” do Mappin estava lá, para não deixar ninguém mentir.
Votando a falar em relógio digital, o primeiro a existir na cidade de São Paulo vem do início dos anos 1960, no conjunto nacional, na Avenida Paulista com a Rua Augusta. Costumava-se a dizer que era o relógio da Willys, a propaganda de uma fábrica de carros daquela época, com seus números na cor naquele neon de cor azul, à noite, era visto por toda a cidade. Hoje a publicidade é de um banco, mas pouca gente vê de longe, porque os espigões da cidade impedem.

Por Mário Lopomo

sábado, 28 de agosto de 2010

Bons amigos

Pelo acontecimento da noitada de tangos, nosso amigo Nelinho nos enviou este poema, que entrego-lhes com meu carinho de sempre.
Muita paz!


Abençoados os que possuem amigos, os que
os tem sem pedir.

Porque amigo não se pede, não se compra,
nem se vende.
Amigo a gente sente!


Benditos os que sofrem por amigos, os
que falam com o olhar.
Porque amigo não se cala, não questiona,
nem se rende.
Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos, os que
entregam o ombro para chorar.
Porque amigo sofre e chora.
Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que acreditam
Na tua verdade ou te apontam a realidade.
Porque amigo é a direção.
Amigo é a base quando falta o chão!

Benditos sejam todos os amigos de
raizes, verdadeiros.
Porque amigos são herdeiros da
real sagacidade.
Ter amigos é a melhor cumplicidade

Estas palavras de Machado de Assís eu ofereço a todos os meus amigos deste site, os que conheço pessoalmente e aos que só conheço através da eletrônica mas que talvez, um dia, eu terei o prazer de abraçá-los.
Saudações a todos,

Leonello Tesser (Nelinho).

Noite memoral em 2010

Anteontem, 26 de agosto 2010, depois de um longo e tenebroso inverno, fui convencido a entrar numa sala cinematográfica.
Eu, inveterado cinéfilo dos anos 60, há muito tinha deixado de frequentar os cinemas, onde, invariavelmente, o sono me abraçava e eu, sem qualquer esforço me entregava aos braços de Morfeu, chegando, frequentemente, a roncar e, por que não dizer, babar.
Alguns meses atrás, eu tinha feito uma experiência e confirmado com minha qued
a por dormir durante as projeções cinematográficas. O filme tinha um tema que muito me interessava, CHICO XAVIER, por isso mesmo, totalmente imbuído em me manter desperto, consegui a proeza de chegar até a primeira terça parte do espetáculo.
Novamente sai do cinema com a sensação de ter gastado uma verba inutilmente e ainda sujeito a ou
vir poucas e boas da minha cara metade.
Pois muito bem, ontem anui em fazer nova tentativa. O filme, um documentário, me interessava muito. O título: “Uma noite em 67” deveria me trazer muitas sensações.
Entramos no cinema, Cine BomBril no Conjunto Nacional, tão meu conhecido de outrora, mais uma vez estranhei por termos comprado um pacotão de pipocas, nos meus áureos tempos o máximo que levava para dentro da sala de projeções era um “dropes” Dulcora (embrulhadinhos uma a um) e, ainda, corríamos o risco de sermos admoestados pelos vizinhos mais próximos por causa do barulhinho irritante do papel celofane. Hoje, para meu espanto, além das pipocas leva-se latas de refrigerante, garrafas de água etc e tal.
Lugares escolhidos quando da aquisição das entradas (outra novidade para mim), aguardamos apenas alguns minutos para o início da sessão.
Outra novidade, não mais surge na tela o Jornal do Primo Carbonari. Agora, apenas uns poucos slides de lojas da região são projetados no telão, substituindo de forma cabal a antiga cortina de anúncios que, nos meus tempos, escondia a tela.
Bem, vamos ao principal. O filme documentaria a noite de 21 de Outubro de 1967 e a finalíssima do 3º. Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record – Canal 7.
Ano de 1967 que, entre muitas coisas, registrava no dia 18 de Abril o meu casamento.
Eu, amante incondicional da MPB, vinha acompanhando todas as edições desses festivais e nesse, em especial, me colocava frontalmente contrário à invasão do rock, da guitarra e dos absurdos de alguns intérpretes.
O filme começou e foi mostrando tudo o que eu já havia assistido, ao vivo e a cores. A sensação era um misto de saudades, lembranças, torcidas, decepções e êxtase.
Os finalistas foram sendo apresentados, entremeados por declarações de quem havia, com eles, dividido o espetáculo.
Surgiram meus, na época, inimigos mortais, Gilbeto Gil, Caetano Veloso, Beat Boys, Os Mutantantes, Roberto Carlos. E meus heróis, Chico “o Buarque de Holanda”, MPB4, Edu Lobo, Marília Medalha (cantora de um único sucesso).
As músicas “Domingo no Parque” e “Alegria Alegria”, por mim execradas, e Maria Carnaval e Cinza, por mim quase desapercebida, ontem já mexeram com minhas emoções e me le
mbraram que, tempos depois, foram por mim aceitas e celebradas.
Finalmente, Chico com sua Roda Viva e Edu Maria Lobo Medalha com a campeã “Ponteio”, quase me levaram ao êxtase.
A visão de figuras proeminentes do cenário artístico da época tais como Randal Juliano, Cidinha Campos, Sérgio Cabral ( o pai do governador carioca), Zuza Homem de Melo, Paulo Machado de Carvalho Jr ( o filho do Marechal da Vitória) Sérgio Ricardo e seu violão voador, foram tão absurdamente marcantes que o filme chegou ao final sem que eu me desse conta e, pasmem, sem que eu pregasse, por pelo menos um pequeno minuto, as minhas pálpebras em sono conciliador.
Sai do cinema empolgado e na esperança de que venham a surgir novos documentários iguais a este e que me levem novamente aos cinemas de Sampa.

Por Miguel Chammas

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O guarda noturno

Lá por volta de 1958, os moradores da minha rua no Bairro da Penha, inclusive meus pais, resolveram contratar os serviços de vigilantes de rua.
Eram chamados de Guarda-Noturnos. Começavam a trabalhar às 22hs e ficavam até as 5h da manhã.
Na porta de entrada das casas, eles afixavam umas plaquinhas, mostrando que aquela residência, estava protegida pela guarnição.

Nós, os adolescentes, nunca entendemos bem o motivo dessa contratação.
Assaltos não haviam, no máximo ladrões de galinha. Tanto que, nossas portas eram abertas pela manhã e só eram trancadas à noite. Então... Por que guarda-noturno? Achávamos que era somente para nos vigiar.
Naquele tempo, namorávamos no portão, ou embaixo da soleira da porta, procurando ficar o mais longe possível da luz que vinha dos postes e de olhares curiosos dos vizinhos, que espreitavam pelas janelas.
As vezes, estávamos tão envolvidos num abraço aconchegante, ou trocando beijinhos apaixonados e pronto... Lá vinha o guarda-noturno, com seu apito estridente, ferir os nossos ouvidos e acabar com as emoções.
Meu pai, que era muito enérgico e zeloso com os filhos, trancava a porta à noite e levava a chave para seu quarto.
Um dos meus irmãos, no auge dos seus 17 anos, tinha sempre um "compromisso inadiável". Então, pedia socorro à nossa mãe. Ela, mui amiga, depois que o papai adormecia, pegava a chave e colocava no quarto das meninas.
Eu era encarregada de ficar acordada, até a hora determinada pela mamãe, para então abrir a porta, sem que meu irmão necessitasse tocar a campainha. Ela, antes do papai acordar, recolocava a chave no lugar.
Isso deu certo por um bom tempo até que, certa vez, numa daquelas noites frias,
com a garoa típica de São Paulo, eu adormeci e, bem quentinha, "nos braços de Morfeu", não consegui acordar para cumprir o combinado.
O pobre do meu irmão, ficou esperando na porta e, não resistindo ao frio, resolveu entrar na casa pela varanda, que ficava no andar de cima.
Aí então, chegou o tal do guarda-noturno, apitando e gritando - ladrão, ladrão!!!
Meus pais acordaram e os vizinhos também. Foi um rebuliço danado.
O coitado do meu irmão, acabou levando toda a culpa, para não comprometer a mamãe, e as futuras saídas de outros irmãos.
Depois de uma trégua, o esquema voltou a funcionar, mas meu irmão passou um bom tempo sem falar comigo.
Guarda-noturno, bedel, lanterninha de cinema, etc... Muita gente para vigiar os adolescente da época, não é?

Por Bernadete Pedroso

Baianada Paulista I

Desde os meados do século passado, o êxodo nordestino foi bastante expressivo na capital bandeirante, com a chegada dos retirantes dos muitos estados da região norte e principalmente do nordeste brasileiro, com o sonho de, por aqui, encontrar o tão desejado “eldorado”. Fugidos das mazelas que o sertão agreste oferecia e, ainda oferece como a fome, a falta de emprego, educação e saúde, dentre outros.
Nas estações de trens e terminais rodoviários o frêmito ululante dos passos largos e rápidos dos 'chegantes' com as suas poucas bagagens acondicionadas muitas vezes em perfeita desordem em velhas malas sertanejas, ou mesmo em pequenos alforjes e até em sacos de aniagens, repletos de suas poucas tralhas, mas carregados de esperanças.
Havia, também, os pontos clandestinos de desembarque daqueles que por aqui chegavam nos famosos “paus-de-arara”, que eram caminhões de carroceria de madeira, destes comuns de cargas, com tábuas transversais que serviam de bancos para os “passageiros”. Lonados para proteger do sol, da chuva e do sereno das madrugadas, empreitada sofrida e perigosa, pelo total desconforto e o alto risco de
acidentes com perdas irreparáveis.
Essas aventuras demandavam um bom tempo de estrada e, muitas vezes, a jornada não terminava com menos de dez dias, podendo chegar até quinze dias, talvez mais, talvez menos. Estradas esburacadas, trechos em terra, o “pinga-pinga” dos ônibus, os pernoites, baldeações de trens e ônibus, o caminhão que quebrava no percurso, acidentes, enfim, motivos não haveriam de faltar. Passado o calvário da viagem, enfim, chegavam ao seu destino final.
Dos muitos milhares que chegavam, a grande maioria já tinham um destino certo para o pouso final. Casa de parentes ou amigos, algum emprego já certo e sempre haveria alguém a lhes esperar em suas chegadas. Outros apenas contavam com a sorte, pois não tinham onde se abrigar e estavam à mercê de suas próprias sortes e, também, da sanha de algum malandro espertalhão que os roubasse o pouco que ainda possuíam de valor e dinheiro. Enganando-os com falsas propostas e informações, caindo, muitas vezes, os pobres coitados, naquilo que conhecemos como o “conto do vigário”, ou outra qualquer aplicação desonesta e criminosa. Uma vez, agora, na grande metrópole que os fascina, suas atenções se voltam para o deslumbramento das imensas avenidas e parques e das m
ajestosas construções, como os edifícios e os grandes casarões.
O movimento da massa humana no frenético “vai e vem” das ruas de grande movimento do centro nervoso do comércio, os automóveis, ônibus e os bondes em seus trilhos. Homens e mulheres, elegantemente trajados, mensageiros “costurando” a população, cumprindo a agilidade de suas tarefas. Ambulantes nas esquinas oferecendo seus “milagrosos” produtos medicinais, bom para todo tipo de doença.
As vitrines das lojas e os grandes magazines também não passam despercebidos dos olhares curiosos e, num determinado canto ou prateleira, está lá o sonho de consumo de muitos deles, o pequeno “radinho de pilhas”, que será o companheiro nas horas de saudade e de solidão. Vencido o primeiro impacto com as novidades metropolitanas, seguem os audazes aventureiros para seus destinos e, a partir dali, traçar suas rotas para sua subsistência que, na maioria dos casos, são absorvidos na indústria da construção civil.
Ponto de partida para a mais destacada das profissões, o pedreiro, seguindo-se da carpintaria e armador de ferragens, com início pela função de ajudante de pedreiro. A dosagem dos materiais e a mistura da massa de alvenaria, o prumo e o nível, os arestamentos e os desempolamentos, a régua para nivelar, aprendizado necessário e importante para a formação do futuro profissional das construções.
Alguns destes personagens já chegaram por aqui com seus ofícios prontos e estouraram seus sucessos. São alguns artistas, cantores, atores, empresários, escritores, empreendedores, etc. Alguns, ainda permanecem em nosso convívio. Outros, já nos deixaram. Alguns, estabeleceram seus sucessos e retornaram à suas origens. Outros, permaneceram ancorados à terra que os projetou.
Outros, não conseguiram o sucesso almejado, retornaram ao berço materno ou estão a vagar por aí, agora mais fortalecidos em suas experiências. Estes são os que aportam a São Paulo que acolhe, que é mãe, que ampara, mas que, em algumas vezes, se torna madrasta e maltrata.
Contudo, tudo é uma experiência nova e um desafio a ser vencido, dessa gente que veio das Alagoas, do Pernambuco, da Paraíba, do Ceará, do Sergipe, do Piauí, do Maranhão, do Pará,
do Rio Grande do Norte e nos habituamos a chamá-los de “baianos”, inclusive aqueles que da Bahia também vieram.
Hoje, contemplando as muitas edificações que São Paulo abriga, rendo minhas homenagens àqueles que, mesmo antes dos “talabardes”, das botas e dos capacetes, por muitas vezes penderam-se nos altos exteriores verticais e, com o risco da própria vida, ultimaram os arremates finais daqueles que mais tarde serviriam de moradia ou complexo de salas de escritórios.
Foram “Josés, Raimundos, Antonios, Sebastiões”, nomes primeiros de um séquito de anônimos que, depois da árdua jornada da criação estrutural, recolhiam-se ao fim do dia para, em uma cama tosca com colchão de palha, fitar um céu de solidão. Não tão estrelado como o céu do sertão, perdendo-se em seus pensamentos e nas saudades dos que ficaram ao longe e, agora, no consolo de seu “radinho de pilhas”, sintonizado em uma rádio “AM” qualquer, que lhes traga o balanço ritmado do baião ou do xaxado.
“Ta vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar...”.

Por Nelson Assis

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Histórias de arrepiar

No final da década de 40, São Paulo era ainda uma cidade de muito verde e sua periferia ainda era cercada por chácaras, onde não havia quase iluminação nas ruas e as únicas luzes eram as provenientes das raras residências ali existentes.
Nas casas dos bairros e vilas mais distantes não havia energia elétrica. Telefone e água encanada era um sonho acalentado pela demagogia dos políticos, muitos deles grandes professores dos demagogos e desonestos que são eleitos hoje em dia e, por incrível que pareça, alguns deles até hoje permanecem no poder.
Em vista disso, pouca gente saia à noite e, quando saiam, muitos caminhavam munidos de uma lanterna ou lampião a querosene para melhor transitar pelos trechos mais escuros do caminho.
Quan
do chovia, então, era o caos; Nas estradas sem asfalto, a lama e o barro faziam sua moradia e o veículo que aventura-se a enfrentar o caminho, estaria mais encrencado que um cara todo melado e sem papel no banheiro.
E assim, nesse ambiente, não sei bem por que a mãe e os vizinhos da gente, insistiam em contar umas histórias de medo onde, invariavelmente, tinha sempre lobisomens, vampiros e fantasmas.
Às vezes, eu ficava parte da noite acordado com a bexiga estourando e aquele medo danado de ir ao banheiro no escuro.

Tudo porque minha mãe sentia uma santa felicidade em contar histórias de arrepiar os cabelos e, o que é pior, a gente ouvia e gostava, mas depois não dormia.
Tinha história do Homem do Saco que vinha de noite pegar criancinhas.
Mula sem cabeça.
Tinha, até, historia de medo que era uma pegadinha.
Aquela que, era uma vez uma mulher descabelada que vinha subindo a escada com uma faca na mão... Entrou, então, pela casa com aquela faca afiada e assim chegava até a cozinha.
Então, a mãe perguntava pra gente, com uma voz cavernosa (SABEM O QUE ELA ESTA FAZENDO?). VOCÊS NÃO SABEM NÃO?
E com uma voz mais assustadora ainda dizia: A MALVADA ESTA PASSANDO MUITA MANTEIGA NO PÃO.
A gente morria de medo, mas aprendia a lição e, depois, contava aos primos e amigos que ainda não conheciam a horrorosa história que, invariavelmente, terminava em risos e gozação.
Um dia minha mãe contou uma história horrível, dessas de tirar o sono.
Ela começava com uma voz diferente e assustadora dizendo que uma noite de muita chuva, raios ventos e trovões... Um menino dormia no seu quarto quentinho, porém estava sozinho seus pais haviam saído.
Então aquele menino, enfiado em sua cama, ouviu no meio da noite em seu quarto um ruído.
Pensando ser o seu pai, o menino ainda dormindo falou com uma voz fraquinha: A bênção pai !
E uma voz assustadora respondeu: - DEUS TE ABENÇOE MEU FILHO, MAS EU NÃO SOU O SEU PAI !
O menino apavorado, quis logo saber quem seria.

Abriu a porta do quarto e... Viu que era sua mãe.
Eu sempre ficava com medo, com meus cabelos ouriçados, na época, ainda criança, eu não tinha pelos para ficar arrepiado.
Hoje perdi meus pelos, como também os cabelos, não tenho quase mais nada que possa arrepiar.
Mas continuo medroso e muito mais hoje em dia.
O apavorante Homem do Saco foi substituído pelo sequestrador.
No lugar da Mula sem Cabeça, o assalto relâmpago. Quando você sai do banco.
E quando você é morto em um assalto à mão armada.
Não faça carinha feia.
Se o culpado for “DE MENOR “, nem mesmo irá pra cadeia”.

Por Arthur Miranda (tutu)

Fruta no pé e piquenique no Pacaembu



Tenho 64 anos e nos anos 40 morava na rua da Consolação perto do Cemitério.
Na esquina da Consolação com Antonia de Queiroz morava minha bisavó com as filhas solteiras. Elas tinham uma loja de armarinhos
que ficava bem na esquina. Depois da loja, vinha a residência delas e, depois, uma chácara com todas as árvores frutíferas que a gente podia imaginar (tudo isso voltado para a rua Antonia de Queiroz).
Ali, era o meu mundo! Como era bom colher as frutas no pé!
Depois do almoço, as tias do meu pai se reuniam embaixo de uma árvore, cuja
copa formava como que uma cabana, com seus ramos até o chão
. Me lembro delas colhendo laranjas, descascando e conversando... E eu comendo as frutas, só olhando, porque criança, naquele tempo, não podia dar palpites.
Outra lembrança que eu tenho é de quando era Pascoela (o dia seguinte ao Domingo de Páscoa); era um costume italiano sairmos para fazer piquenique com as tias. Íamos andando, com nossas cestas de lanche, até o bairro do Pacaembu que, naquele tempo, era bem desabitado e ficávamos andando pelas ruas como se fosse num parque. Depois, sentávamos em algum morrinho e comíamos o nosso lanche, eu, minhas primas e tias.

Por Lourdes Cecília Bove Ciavata

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Memórias sessentivas

Anos 60, eu estava no auge da minha curtição de boemia. As noites eram todas muito bem aproveitadas e os dias, mesmo quando totalmente estafado, eram de muito trabalho. Fui educado pelo Sr. Alfredo e por D. Terezinha que o trabalho é sagrado e não aceita negligências. Então, por mais que o retorno à casa, todas as noites, viesse ocorrer depois das quatro horas da matina, às sete eu tinha de estar desperto para dar continuidade à labuta do dia a dia.

Para melhor adaptação da minha vida agitada, busquei trabalhar com algo que me desse espaço para alguns momentos de descanso ao longo do expediente. Assim, candidatei-me e fui aceito na firma Auto Asbestos (Baterias Durex), cujos escritórios estavam localizados na Rua Dr. Ricardo Batista (Bixiga City), a uma quadra e meia do 307 da Rua Major Diogo, onde eu residia. Fui admitido no setor de Crédito e Cobrança para exercer as funções de "informante". Assim, no inÍcio do expediente, recebia, juntamente com o Oswaldinho, outro informante do setor, as fichas a serem preenchidas com informações comercias.

Saíamos, então, para desempenhar nossas tarefas. Lógico que, rapidamente, aprendi os macetes do cargo. Então, de posse das fichas, fazia um tour pela cidade visitando empresas tais como Mesbla, Isnard, Banco do Brasil, Sanbra e outras que se prestavam a atender os coitados dos informantes comerciais. Com elas deixava as fichas de pesquisa para serem preenchidas e devolvidas no dia seguinte e retirava as fichas deixadas no dia anterior.

Pronto, antes das onze horas da manhã, minha tarefa principal estava concluída. Cônscio do dever cumprido, voltava para casa onde, depois de almoçar, eu me deixava cair no sofá da sala e me permitia tirar uma soneca de 2 ou 3 horas e, assi
m, recuperava minhas forças para as atividades boêmias. Por volta das 17 horas, saía de casa e com a maior cara de pau, aparentando o maior cansaço, entrava nos escritórios para entregar o resultado do dia anterior. Fazia algumas coisinhas por ali e às 18h voltava para casa, descansava a carcaça por mais umas duas horinhas, levantava, tomava banho e, depois de vestido e perfumado, com algumas borrifadas do velho Lancaster argentino, voltava para minhas atividades noturnas nos cabarés e inferninhos da Boca do Lixo.

Quando me demiti da Auto Asbestos, fui trabalhar no setor comercial da Armações de Aço Probel, instalado no primeiro andar do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Ali, já totalmente tarimbado, continuei a desempenhar a mesma rotina anteriormente praticada na Auto Asbestos. Ao lado da Probel, no mesmo Conjunto Nacional, estavam instalados os Salões de Festas do Fasano onde, nas temporadas de bailes de formatura, eu frequentava quase todas as noites. Por ser obrigatório o uso de trajes a rigor nesses bailes, todas as manhãs eu entrava na empresa totalmente trajado com as roupas do baile e só depois ia desvestir quando da minha saída para buscar informações. Era o funcionário mais bem trajado da empresa. Foram tempos de muita alegria e danças.

Por Miguel Chammas

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fantasmas Virtuais


Clica-se num botão e abrem-se as cortinas do espetáculo. A tela se ilumina e, por detrás dela, um universo de coisas, imagens, palavras, informações.
Está tudo ali, seções desmesuradas de lembranças, amores e amigos desaparecidos. Tudo que aprendemos, o muito que deixamos de saber e o que jamais compreenderemos.

Toda a sabedoria da Biblioteca de Alexandria, do Novo Michaelis, dos papiros do Mar Morto, dos segredos dos alquimistas. As profundezas insondáveis do absurdo universo.
É um mundo totalmente novo e, depois que se coloca um pé tímido nele, não há mais saída. Somos arrastados para um vórtice, que nos atrai mais e mais.
Tanta riqueza incalculável e, no entanto, sua extrema fragilidade está sempre presente.
Como tudo na vida, o muito que nos é dado poderá ser tomado, de um momento para o outro. Nada há de sólido e concreto no mundo.
Como disse Hélio Pellegrino, no interior de uma rocha, qualquer rocha, por mais impenetrável que pareça, canta uma fonte de águas cristalinas.
Acho a internet um belo exemplo dessa relatividade. Tudo que está ali armazenado, ao nosso alcance, pode desaparecer por intervenção de um vírus, ou uma simples falha no sistema. Nunca a existência demonstrou tanto sua impermanência, agora quase ao alcance de qualquer um. E, nesse universo, tudo é assim.
Os amigos, por exemplo. Tanto existe a facilidade para fazê-los, como para perdê-los para sempre, no próximo instante. São criaturas virtuais, seu peso e estrutura são fagulhas de energia arm
azenadas em misteriosos chips.
Nem é preciso buscar muitas explicações: é a internet e com ela as coisas são assim mesmo.
Há algum tempo, li num site a nota de alguém que suplicava por uma foto de uma praça, hoje desaparecida, que lhe foi muito importante na infância, a Praça Almeida Junior, no bairro da Liberdade, em Sampa.
Lá, tinha brincado seus jogos, conhecido sua esposa, então também uma criança. E desde que se mudara, jamais chegara a rever essa praça, mesmo em fotos.
Como eu também tinha minhas recordações do local, pesquisei; para
a internet, quase nada é impossível. Consegui a tal foto da tal praça, bela e serena nos anos cinquenta. Enviei-a ao cidadão, que ficou gratíssimo e, assim, iniciamos uma amizade virtual.
Até um ponto que resolvemos nos materializar num almoço. Escolhemos, de comum acordo, o Bar do Nico, pitoresco recanto do Ipiranga. Foi mesmo um belo almoço, muito papo e chope de primeira.
Depois disso, mandei a meu novo “amigo” meus comentários sobre o evento e, também, algumas de minhas crônicas do site. Resposta? Nenhuma.
Não houve nenhum retorno, como se jamais nos tivéssemos falado. Como se a praça jamais houvesse existido.
Fiquei imaginando o que poderia ter acontecido. Teria dito algo que o desagradasse? Nossa
imaginação aí corre solta: teria me achado inculto, para sua renomada sapiência, ou pobre demais para sua imensa fortuna? Concluí: não era nada disto. Que foi, então que eu fiz?
Aborrecido, não tentei mais contato nenhum. Passou-se muito mais de um ano, eu já até tinha esquecido o assunto, quando então chega um e-mail:
- estimado amigo Luiz, estou lhe escrevendo para retomarmos aquele agradabilíssimo papo, naquela ótima cervejaria...
Não lhe respondi. Era minha hora de deletá-lo. Há limites para tudo, mesmo para a internet...

Por Luiz Simões Saidenberg

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Uma fábula a respeito do surgimento de uma doença ainda incurável



1967, o professor Barnard realiza o primeiro transplante da história com relativo êxito. O paciente resiste por poucos meses, o problema de rejeição se manifesta de imediato e, na esteira dessas ocorrências, os grandes laboratório iniciam pesquisas, numa maratona surda mas, de grande intensidade e repercussão. Um desses laboratórios é o Globus.
Pois é, Belinha meu bem, nossa situação piorou de vez... perdi o emprego nas docas, que não é lá estas coisas em matéria de salário mas, dá pra gente sobreviver.
E agora com a chegada do nosso filho... como vai ser, Mauro, não consigo arrumar como doméstica por causa da gravidez e o máximo que consigo é cuidar da pequena horta pra abastecer um pouco nossa mesa.
Sou moço, ainda, vou a campo encontrar um lugar que precisam de gente forte... essa política do Salazar de priorizar a metrópole em detrimento das colônias, graças a Deus está no fim. Bem ou mal, Angola vai, aos poucos, se emancipando e em breve seremos um pais forte no contexto africano.
Na Africa do Sul, Johanesburgo, repercute o grande feito de Barnard, os transplantes são aplaudidos pela classe médica em todo o mundo e bem recebidos pela população que, na dependência de restauração de um determinado órgão, uma esperança se avizinha com a substituição simples desse órgão por outro cedido por doador ou simplesmente, obtido de outra pessoa morta, restando, ainda, o entrave da rejeição.
E aí, Mauro, conseguiu alguma coisa? Nada, Belinha, essa merda de situação... não sei até quando vai nos infernizar. Aquilo que te propus, há uns meses, de irmos pro Brasil...
Não sei, não, Mauro, se fosse pra metrópole, vá lá mas...pro Brasil, muito es
tranho e longe, além disso, onde vamos arranjar dinheiro pra viagem... e agora, dentro de três meses vai nascer nosso filho.
Eu sei querida, não descuido disso, não, se estabelecermos uma meta vou me virar de todo jeito pra arrumar a grana. Olha, vamos ver se você concorda. Precisamos ir embora, arrume emprego ou não e pelo futuro do que vai nascer, aqui não quero ficar mais... como prioridade estabelecemos Brasil. Ouvi dizer que em São Paulo as oportunidades são muitas e boas. Se não der certo, Lisboa é a escolha. Que é que você acha...
Também ouvi muita coisa sobre o Brasil, mesmo idioma e o cidadão português se sente em casa mas, meu amor não esqueça de que somos negros e ...
Nossa mãe, Belinha, como você esta por fora... o Brasil, uma das maiores populações de negros do mundo...
Eu sei, eu sei, não sou tão estúpida assim... você já teve a curiosidade de saber como vivem os negros lá... não, é claro.
Pelo menos, melhor do que aqui.
Ainda se ouve ecos dos movimentos estudantis na França, o Brasil caminha para o terceiro aniversário da queda do governo civil e os militares ocupam o pais dando uma verdadeira cassada aos partidos de esquerda, chegando a medidas que resultam em mortes nem sempre bem explicadas. Barnard continua suas pesquisas, fazendo transplantes e cuidando sempre do problema da rejeição, que com o passar do tempo vai se aperfeiçoando. Aos candidatos acena com a esperança de que, não havendo cura para seu mal, o transplante se torna uma salvação precária, mas, com a certeza de se encontrar a droga inibidora da rejeição, em tempo hábil.
Ana Paula chega cedo a casa onde se localiza o Projeto Esperança. Vai fazer seu turno matinal, antes de seguir para a escola estadual, onde leciona história, na parte da tarde.
Doroti, estou vendo carne na geladeira, quem trouxe?
Foi o seu Dionísio, o colaborador mensal; veio ontem, no fim da tarde e trouxe, também um pacote de goiabada.
Ah, já sei, Dionísio, bom coração. Ainda bem que ainda temos pessoas como o senhor Dionísio, que colaboram com o Projeto.
Projeto Esperança, casa de caridade, fundada no ano de 1988, há mais de 20 anos, pelo padre Aníbal, professor de medicina na USP, agora lecionando na UFRJ. A entidade, criada quando a AIDS estava em grande expansão, se tornando quase uma epidemia e marginalizando completamente os infectados com o vírus HIV. Boa parte desse contingente, vai bater as portas do Emílio Ribas, chamado Hospital de Isolamento que, com problemas de acomodações, pacientes terminais são enviados ao Projeto Esperança, principalmente os abandonados por suas famílias.
Amparado parcialmente pela prefeitura de São Paulo, administrado e dirigido por pessoas da região, Jardim Bonfigliolli, que sem nenhuma remuneração emprestam seu tempo, graciosamente, em prol desses pacientes, num precário gesto de respeito à ética e à dignidade humana, mantendo-os alimentados, limpos, vestidos e medicados, com doações de roupas, alimentos, remédios, etc, de pessoas e outras entidades, fato este que ocorre até hoje, ano de 2010.
Mauro Gonçalves e Bela Cintra Gonçalves, casal de 23 e 19 anos, respectivamente, 2 de casado, vivem as agruras do desemprego, com escolaridade pouco acima do básico, vivendo numa Angola em fase de emancipação, em 1967. Mauro tenta a escola profissional pra melhorar seu aprendizado no segmento de mecânica, não consegue grandes coisas e Belinha tenta trabalho como doméstica, obrigada a deixar por causa da gravidez.
Belinha, eu li em jornais há alguns dias, que tem um laboratório oferecendo emprego temporário. Não especificam nada sobre o serviço, apenas que só darão orientação aos interessados, pessoalmente. O laboratório é o Globus que fica num município não muito distante daqui, e eu vou até lá. Afinal, não tenho nada a perder.
Que é que pode ser, Mauro, eles pedem alguma especialidade?
Não, querida, apenas que tenha idade de 20 a 30 anos, melhor se casado, boa saúde, sem problemas com justiça e nenhuma pendência jurídica sobre dívidas e outros entraves.
Bem, de fato não custa nada tentar, né? A única coisa que me incomoda é o “temporário”, Mauro, será que...
Não sei Belinha mas, estando lá dentro é mais fácil conseguir alguma coisa... e se eu conseguir a vaga, bem entendido, vamos ver, vou até lá.
Antonieta, você já limpou os quartos e o banheiro? Veja bem que ontem um paciente se sentiu mal e vomitou no quarto e banheiro e precisamos desinfetar muito bem os ambientes. Por favor, não economize detergente, esfregue bem, tá?
Tá bem, dna. Doroti, pode deixar comigo... a senhora e a professora Ana Paula podem confiar em mim... vocês me dão a oportunidade de fazer alguma coisa em benefício dessa pobre gente e eu, sem muita escolaridade pra fazer outra coisa, cuido da limpeza, não vou e nem quero decepcioná-las.
Confiamos sim, Antonieta e agradecemos sua dedicação.
Eu é que tenho de agradecer, a senhora, respeitosa e educada, boa com todos. E a professora Ana Paula, que bondade, que ternura que ela tem com os pacientes, meu Deus, ela chega a chorar por eles... pode-se dizer que ela é uma negra de alma branca, não é verdade dna. Doroti?
Por favor, Antonieta, nunca mais repita isso, principalmente na frente da professora. Sei, você não falou por mal, não tem maldade alguma mas, a gente deve ter em mente que não se deve conceituar as pessoas baseadas na sua raça, credo, posição social e muito menos pela cor de sua epiderme. Se assim fosse, diríamos que um branco, safado, crápula, mentiroso é sempre melhor do que um negro honesto, de boa índole e caráter reto, não é mesmo?
É mesmo, dna. Doroti, a senhora tem razão... é que a gente ouve falar assim e repete, como papagaio, sem saber o que está falando. Desculpa, nunca mais vou repetir isso.
Então, como foi a entrevista, Mauro.
Pois é, querida Belinha, a coisa é muito boa, fui aprovado mas, tem um agravante: um risco, que não é pequeno mas, acho que vou aceitar.
Pera aí, que risco é esse, meu Deus.
Vou te contar... em resumo é para servir de cobaia para novos medicamentos a serem lançados. Eles, o laboratório, me dão todas as garantias possíveis, assistência médica pra mim, você e também ao nenê, quando ele nascer e com seguro de vida. Ficarei sob os cuidados de toda a equipe de pesquisadores, observando minhas reações, comportamento, meu apetite, minha sede e até minha satisfação sexual, com você, evidentemente. Ficaremos como num hospital de luxo, sem nada pra fazer, apenas passeando pelo bosque anexo ao prédio, lendo, assistindo filmes numa sala especial, praticando alguns esportes enfim, numa vida boa, por 3 ou 4 meses, se tanto. Eu e você.
Tudo isso, pra ganhar quanto?
Ah, aí esta o melhor, vou ganhar mais do que o suficiente pra irmos para o Brasil e ainda sobrar um bom dinheiro pra começar um negócio qualquer.
E até quando eles esperam pra você dar uma resposta?
Bem... Belinha... é que...eu... eu... já dei.
As notícias sobre o primeiro transplante de coração no Brasil, em 1968, um ano após o sucesso de Christian Barnard, do professor de medicina da USP doutor Euryclides de Jesus Zerbini confunde-se com as da Aids, tragédia surgida simultaneamente com os transplantes. Os sintomas de um recém transplantado é a forte rejeição do corpo estranho, onde a ciência trabalha arduamente em busca de uma droga que iniba essa rejeição.
O maior e fatal problema do aidético é a total incapacidade de defesa do seu organismo, onde um simples resfriado o leva a morte.
Está quase no fim, querida. Mais alguns dias e acabam nossas férias. Depois de quase 100 dias nessa vida boa acaba, Belinha. Vou entrar na grana e providenciar nossa viagem, sem perda de tempo.
Mas, você não quer desistir, querido.
Por que você diz isso, Belinha, será que ainda preciso te falar mais dos benefícios que nossa filha terá nessa mudança?
É por ela que me preocupo, Mauro, aqui, bem ou mal se vive conforme nossa capacidade e lá, como será. Falar nisso, que tipo de medicamento testaram em você, afinal você foi cobaia e, pelo menos tem o direito de saber o que foi inoculado no seu organismo.
Sim, querida, eles me deram uma pálida idéia dessa droga. É um inibidor de rejeição, voltado principalmente aos pacientes de transplante. Não podem entrar em maiores detalhes por questões econômicas e muito em breve vai haver um congresso e ai, sim teremos tudo, detalhadamente.
Bom dia, Doroti, hoje estou bem disposta pra trabalhar. Chegaram mais algumas doações? Precisamos de muito alimento, principalmente carne, pois roupa, legumes e verduras estamos bem abastecidos. Cereais ainda carecem um pouco; material de limpeza, também precisa ser reforçado.
_ Bom dia, Ana Paula, muito me alegra sua disposição. Vamos providenciar tudo. Já temos a promessa do casal Moreira e do casal Venturini, de cobrir estas faltas. Sempre que alguns itens estão em falta eles me pedem que eu os comuniquem. Mudando um pouco de assunto, Ana Paula, estou , deveras curiosa de saber alguma faceta de sua vida, se é que você quer entrar na questão. Conheço você já há 6 ou 7 meses e, apesar de você falar um português corretíssimo, sua dicção trai um pouquinho uma certa influência de origem que não sei explicar do que.
Não existe nenhum segredo, Doroti, sou mesmo nascida em Angola, em 1968, na época, possessão portuguesa. Meus pais, vieram ao Brasil em fins de 1969. Tão logo chegando em São Paulo, arrumaram empregos com meus pais adotivos, Antero Antunes e Virgínia Lemos Antunes. Ele, já falecido há três anos, tinha, na época, uma padaria onde meu pai trabalhava e na residência do casal, minha mãe era a doméstica, num arranjo ideal para meus pais. Não cheguei a conhece-los pois eles morreram 2 anos após chegarem ao Brasil. Tinha só pouco mais de dois anos. Dona Virgínia acabou de me criar, com mais dois filhos, um casal. Foi como minha mãe natural havia sonhado e que ela não teve tempo sequer de me ver crescer.
Virgínia, que a amo como mãe, mesmo, e sou grata a ela e ao sr. Antunes, um homem que foi em vida meu verdadeiro pai. Agradeço a eles e a Deus, a educação que me proporcionaram.
Você perdeu seus pais muito cedo, Ana e os dois quase que simultaneamente; pelo que você falou, seu pai faleceu em maio de 1971 e sua mãe em outubro do mesmo ano. Seria um amor tão grande que sua mãe não resistiu?
Não, Doroti, minha mãe era muito jovem, bem formada apesar da pouca escolaridade. Amou meu pai ardentemente, sim porém, não a ponto de desesperar-se pois, o amparo e carinho que meus pais adotivos lhes deram foi suficiente para ela aceitar o desenlace.
E sua mãe ficou um pouco mais conformada...
Nos poucos meses que viveu sem meu pai, teve tempo e iniciativa de me deixar uma carta explicando, do ponto de vista dela, o que detetou como sendo a causa da morte de meu pai e, mais tarde a dela. Essa carta ficou aos cuidados de minha mãe adotiva pra ser aberta e lida por mim quando adquirisse uma boa formação, o que ocorreu quando de minha formatura no colegial. Venha em casa no próximo sábado, meu marido vai jogar futebol com os filhos e nós ficaremos a vontade. Leio a carta e, também vou dar minha versão a respeito.
Entre, Doroti, fique a vontade... Preparei café com rosquinhas, está frio e apetece um lanchinho assim.
Está ótimo, Ana, a curiosidade aumentou tanto que...
Tá bem, Doroti, esta é a carta, veja, está datada em julho de 1971, dia 12, e começa assim:
“Querida filha Ana
Escrevo esta porque não vou viver muito, quem sabe, nem conhece-la melhor. Sei disso porque sofro do mesmo mal que seu pai, que morreu mais amargurado ainda por não ter a felicidade completa de abraçar e beijar sua filha, já crescida.
Pra conseguir dinheiro e fazer a viagem, seu pai arranjou um trabalho de alto risco, submetendo-se a servir de cobaia pra um laboratório, em Angola, pouco antes de você nascer. Ele aceitou porque o ganho era mais do que o suficiente pra viagem. Você nasceu e em seguida embarcamos para o Brasil, gozando de boa saúde, os três.
Quando se deu o falecimento, seu pai com 24 anos, moço forte, vinha apresentando um estado de debilidade física incrível, não podia apanhar um resfriado. Quando isso aconteceu, imediatamente se transformou em gripe e mais alguns dias, pneumonia. Seu Antero não media esforços com médicos, remédios e hospitalização, deixando a equipe médica do Hospital Beneficência Portuguesa atônitos porque não conseguiam detectar a causa do mal. No atestado de óbito, antes de eles assinarem, me fizeram muitas perguntas sobre hábitos e costumes do Mauro. Se ele era viciado, se tinha amantes, se ele fizera, recentemente, alguma transfusão de sangue, se eu suspeitava de ele ter relações sexuais com prostitutas ou com outros homens. Neguei tudo, é claro, seu pai sempre foi um homem correto, decente, muito apegado a família, de princípios rigorosos, nunca pensaria em comprometer a nossa saúde com essas aventuras. Sempre confiei nele.
Lembro que, pouco antes de falecer, seu pai me segredou que os sintomas que ele sentia eram idênticos aos que sofrem dessa nova epidemia, que se alastra por todo o mundo: a Aids, cujo principal e fatal sintoma é a falência total do sistema imunológico, a defesa natural do corpo humano. E era, justamente o sintoma da vacina que seu pai tomou ao se submeter como cobaia, no laboratório Globus, em Angola.

Nossa mãe do céu, Ana, mas isso é por demais emocionante...
Os principais laboratórios do mundo corriam, na época, atrás de uma droga que eliminasse o princípio natural da rejeição, ocasionada em operações de transplantes. Quem me garante que o teste feito em seu pai, não teve o resultado positivo? E que, depois da droga inoculada, não conseguiram voltar ao estágio inicial na saúde de seu pai? É muita coincidência, minha querida filha... fomos vítimas de uma terrível fatalidade, patrocinada pela ambição desenfreada dos laboratórios. Na esteira das pesquisas, a disputa pra ser o primeiro, arregimentaram pobres e analfabetos pra servirem de cobaia e apresentar a droga, surgia os primeiros casos de Aids. Onde foi feito o primeiro transplante? na Africa; onde surgiram os primeiros casos de Aids? Na Africa; tudo no mesmo ano. Ninguém fala nada, nem imprensa, rádio e televisão. Grandes laboratórios tem muito dinheiro, anúncios comerciais que alimentam a mídia do planeta. Sabe por
que vou morrer agora? Não fui cobaia mas, seu pai, inconscientemente me contaminou com um vírus desenvolvido em laboratório.
Gostaria de beija-la pessoalmente, meu amor mas, isso não vai ser possível. Dê sempre o amparo para seus pais de criação pois, sei que vai acontecer isso, seu Antero e dona Virgínia prometeram que vão cuidar de você. Um doce beijo e um forte abraço de sua mãe. Adeus.
Bela.

Por Modesto Laruccia